quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Em Portugal ou em Espanha, escrever é chorar - primeira parte


Quando lhe liguei, a chamada caía repetidamente, ou a voz que a linha transportava era sussurrante em demasia para um entendimento. Percebi depressa que as coisas se fariam devagar, com tempo e com a satisfação da paciência. Perguntei-lhe pela possibilidade de deixar-se fotografar para a revista. Respondeu-me que fotografias suas ter-lhe-ão feito apenas duas ou três nos oitenta anos da sua vida e confidenciou-me que, de entre todas, gosta somente daquela em que conversa com alguém, há já décadas, na Cotovia. Quando o encontrámos em Sintra, naquele que seria o domingo mais quente do ano, José Bento, apresentando-se ao João e sabendo que ele era o fotógrafo de que lhe falara, reproduziria com uma exactidão espontânea o que me contara por telefone, uma semana antes, sobre como empregara o primeiro dinheiro que ganhara na compra de uma máquina fotográfica que quase nunca usou. Mas não foi por aí que começámos a nossa conversa.

Ainda antes das apresentações, feitas de modo mais detido no táxi que nos levou da estação de comboios para a vila, olhava a serra que oscilava sob o caramelejo, e dizia-nos que era ali que os casais jovens marcavam encontro. “Uma espécie de reinvenção moderna da Arcádia”, acrescentou. E sorria. Umas horas mais tarde, enquanto nos preparávamos para abandonar a esplanada do Café Paris, onde se escutava mais o espanhol que o português, explicaria que tinha por hábito caminhar pelos montes após os almoços com amigos espanhóis em sua casa, por alturas da feira de São Pedro, e amiúde se deparavam com eles.

O empregado de mesa teve de insistir um punhado de vezes para que decidíssemos o consumo, enquanto a conversa nos envolvia na sonolência do pico da tarde. Aquele homem, como nós próprios, não vinha da metrópole, e isso pressentia-se na languidez dos gestos, no passo lento enquanto recomendava o ar da serra, “coisa de se cheirar”. Mais tarde, entre a vegetação densa dos jardins de Sintra, José Bento explicar-nos-ia que era natural de uma aldeia na região de Aveiro, na qual a sua família causara uma forte impressão com uma cama de rede que trouxera do Brasil e que suspendera entre as figueiras onde costumava dependurar-se com o seu irmão, até cair alguma vez de maduro, tendo-se quebrado o ramo em que se sustinha. O modo como olhava as pedras e recordava Pascoaes, que conheceu, condizia de forma talvez surpreendente com as recordações de Madrid.

“Fui diversas vezes a Espanha apenas para procurar um livro”, comenta, enquanto o empregado de mesa conquista, após um punhado de tentativas frustradas, a informação de que carece, aprendendo, também ele, a paciência: um descafeinado e um éclair de chocolate. Quem diz Espanha diz sobretudo Madrid, “porque havia mais oferta, e tinha por lá muitos amigos”, mas também Salamanca ou Badajoz. Era a sede da leitura, sempre mais do que o ofício de tradutor, se é que de uma a outro há com efeito alguma distância, que o movia.

Confrontado com a importância que o catálogo das suas traduções tem no estabelecimento de um cânone da literatura espanhola em Portugal, José Bento recorda que “há por aí um prémio que distingue as figuras que mais tenham contribuído para a divulgação da cultura ibérica, prémio esse que já foi atribuído a diversa classe de gente e que eu nunca obtive”. Pergunta-se: “é estranho, não é?”; e é ele próprio quem responde: “em Portugal não tratamos bem ninguém, mas também não são os prémios que me movem”. A sua vida literária, a haver uma, sempre se pautou, de facto, pelo recato e pelo comedimento: “A minha vida é estar em casa. Não faço a vida literária. Estou em casa, trabalho, passeio, quando era mais novo fazia as minhas viagens. Nunca me preocupei com manter relações. Entrevistas, fotografias, é coisa que praticamente não deixo”.

Em retrospectiva, cito indiscriminadamente um conjunto infindável e muito respeitável de nomes de autores que constam do elenco das suas traduções  (San Juan de la Cruz, Fray Luis de León, Jorge Manrique, Rojas, Góngora, Gustavo Adolfo Bécquer, Garcilaso de la Vega, Francisco de Quevedo, Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez, Vicente Aleixandre, Federico García Lorca, Cernuda, Miguel Hernández, Jaime Gil de Biedma, César Vallejo, Pablo Neruda, Unamuno, Ortega y Gasset, Borges, María Zambrano, Octavio Paz, Lope de Vega, Calderón de la Barca, Valle-Inclán…), mas não parece muito interessado em falar do passado, cortando-me a palavra: “Acabei há dias por uma segunda vez o segundo livro que traduzi”. De que livro se trata? “O Lazarillo de Tormes”, responde. “Nos meus vinte anos fiz a tradução, li-a, achei que estava uma porcaria e rasguei aquilo tudo, de maneira que fiquei com aquela entalada e nunca mais lhe peguei. Até agora”.

O trabalho nunca pára: “Agora tenho uma série de coisas para publicar, mas a edição está de rastos. É certo que a Assírio ainda vai dando um jeito. Actualmente o mundo das editoras está completamente esfrangalhado”. José Bento já fez mais pela literatura espanhola do que qualquer ministério ou programa governamental. Não é, no entanto, algo que o preocupe. Recusa assumir a tradução como uma espécie de missão: “nunca tive a ambição de ser um divulgador. Traduzi sempre simplesmente porque gosto e o que gosto de traduzir”.

Detenho a conversa no ponto em que toma o processo do seu trabalho. “Normalmente faço tudo de forma rápida. Ou então demoro anos e anos. A antologia de Unamuno, por exemplo, andei a trabalhar nela durante cinquenta anos. Quando comecei tinha para aí uns dezoito”. José Bento sabe, desde que me perguntou por mim no táxi, que Miguel de Unamuno me interessa e faz questão de alongar-se sobre o autor espanhol: “Unamuno também me interessa bastante. Interessa-me como poeta e como pessoa. É o maior espanhol do século XX. Até mesmo para aqueles que não gostavam dele e que eram dele tão distintos, como Cernuda, por exemplo, que afirmou que era o maior poeta espanhol de novecentos”.

É apenas um dos muitos autores de língua espanhola que traduziu, em milhares de páginas que definem um cânone mesmo na perspectiva da historiografia espanhola. Mas a conjuntura editorial actual não está conforme com tamanho empreendimento: “Agora é impensável traduzir muita coisa, porque não há editoras com possibilidade de estarem interessadas. Além disso estou velho e tenho pouca pachorra. Ainda se fosse somente o trabalho, mas depois andar ainda à procura de quem se interesse pelo produto…” Tem preparada, não obstante, uma antologia de Borges a publicar-se em breve, a tradução de Persiles y Segismunda de Cervantes e um livro que lhe é particularmente querido, que está para sair há já vários anos, Ocnos, de Luis Cernuda.

Apressa-se a desmentir que levou uma vida dedicada à tradução. “Não é uma vida inteira. Fiz muitas outras coisas, trabalhei num escritório, fui professor, sei lá, não foi só traduzir”. Insisto, não obstante, na quantidade e qualidade pouco comuns do seu trabalho de tradutor. “Tantos anos a traduzir espanhol já é mania. Comecei como qualquer leitor, depois experimentei traduzir e gostei. Um tipo entusiasma-se e depois atrás de um vem outro. Mas durante muito tempo não havia editores para as traduções que eu fazia”. Até à criação, em Espanha, de subsídios à tradução de autores de língua espanhola para outras línguas. “Foi então que os editores se interessaram, sobretudo a Assírio, contando com essas ajudas”. Com ditos apoios se publicaram, entre outros, Garcilaso, Quevedo, La Celestina. Das traduções não recebia, porém, grandes contrapartidas financeiras: “Tive sempre outras fontes de rendimento nessa altura. Estamos a falar dos anos 60 e seguintes e eu tinha um emprego em que ganhava razoavelmente bem. Era desse emprego que vivia, nunca das traduções”. Estas eram fonte apenas de trabalho, “para fazer o gosto ao dedo”, como afirma, dirigindo-se ao João: “é como você com a fotografia, não é? Uma espécie de prazer solitário”.

O primeiro livro que traduziu foi Platero y yo. “Já tinha lido muitos livros espanhóis e teria uns vinte ou vinte e um anos quando um amigo levou aquela tradução ao Jorge de Sena, que gostou bastante dela. Na altura, ele era o director literário da Livros do Brasil e foi lá que o livro se publicou. Foi assim que começou”. De início, pensou que seria uma experiência sem continuidade. Entre 1958, ano em que se publicou a sua tradução do livro de Juan Ramón Jiménez, e a publicação de uma antologia de Neruda, organizada e traduzida por si, José Bento esteve quinze anos sem publicar. “Durante os anos que se interpuseram entre um livro e outro traduzi um sem fim de coisas para a gaveta. Quando se publicou a antologia, Neruda tinha até uma certa saída, pelas conotações políticas que implicava. E foi só depois de 85 que comecei a publicar com mais regularidade”.


As coisas começam a tornar-se mais sérias quando a sua vida se cruzou com a de Manuel Hermínio Monteiro, editor da Assírio & Alvim. “Tinha eu na altura uns quarenta anos. Conheci-o por acaso, na rua do Carmo, que eu subia acompanhado de um amigo que nos era, afinal, comum. Ao tomar conhecimento das minhas traduções, mostrou-se desde logo muito interessado em publicá-las”. Foi assim que a Assírio se fez a sua casa predilecta, conta: “se não fosse o Hermínio… Ele é como a alma da edição”.


*Fotografia de João Varela

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

         Quando ela me olha eu quase sinto o formigueiro da própria existência cobrindo a superfície do meu corpo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

e vejo-a então pelo retrovisor, e paro a motocicleta contra as ervas, atiro-me contra o maple assustado, levanto o auscultador e espero enquanto desfio as bainhas para o chão, ligo o televisor, que estupidez, tudo isto, o rancor, o mundo, o próprio corpo que sofria como limitação, e levanto-me para a ver chegar, enquanto toca à campainha arranjo a camisa, estendo-lhe a mão,
A menina outra vez,
e no seu olhar na minha altivez
Estou quase a sair,
mas atrasa-me nas contas da vida e deslumbra-me na miséria de ser com um passo de dança,
Cale-se e dance,

mas eu não sabia, não tinha onde amarrá-la na miséria de mim, dançado por ela até à loucura 

domingo, 26 de outubro de 2014

Como se escreve uma casa



1.      Quando Gaston Bachelard designa a procura, por parte do indivíduo, de um espaço topofílico, aquele que mantém uma relação tímica com o sujeito, um espaço doméstico - a parte do mundo que delimitamos como casa -, reconhece que a dimensão espacial da existência determina o modo como a concebemos. Existindo, não somos chegados somente ao mundo, mas ainda a um núcleo familiar que, mediando a nossa relação com ele, mapeia o conjunto das primeiras coordenadas e funda uma educação familiar.

2.    Pouco a pouco, o mundo abre-se-nos em horizonte. A transferência da nossa existência do espaço familiar infantil para um espaço mundano, amorfo e por esculpir, determina a necessidade individual de romper o cordão umbilical com a casa familiar e de fixar um espaço para ser. A casa do futuro surge-nos, adolescentes, como um lugar que se procura, que não nos é um dado. Desse esforço participa a educação, espaço determinante no tempo desta transição. Que essa transição se faça de modo harmonioso e interrogante a um tempo, eis uma das missões da escola, cuja topografia perfazemos diariamente.

3.    A procura de um espaço para se ser está, desde logo, intimamente relacionada com a perceção de um tempo que se adensa como limite: crescer é também, e talvez sobretudo, aprender a viver com a evidência de que ele nunca nos é suficiente. Por essa razão, a fundação de um espaço que se faz através da escola é também um projeto de domesticação do tempo. No espaço-quinta, justamente, a relação cronotópica (relação espaço-tempo) surge agudizada. A passagem do tempo traduz-se naturalmente na mutação do espaço: tudo começa com a primavera, seguida do verão, do outono, do inverno. Quatro maneiras de descrever o colégio (aluna A). O espaço-quinta concebe assim um simulacro útil de plenitude temporal, suspendendo momentaneamente o pendor devorador de Cronos: Os intervalos passados junto às árvores, arbustos e insetos que captam os últimos raios de sol são os melhores, sem preocupações, com um único pensamento: quem me dera fazer parar o tempo (aluna A).

4.    O espaço-quinta converte-se assim num mediador positivo na relação com um mundo excessivamente acelerado, feito de recantos, refúgios (nunca esquecerei os recantos do colégio – aluna B), como elemento protetor (espaços que servem de refúgio – aluna C) que potencia um progressivo aprofundamento da relação do eu consigo mesmo, de autorreflexividade que promove o conhecimento do próprio na relação com este espaço de conforto: conheço estas quatro estações, momentos, rotinas, tal como conheço a palma da minha mão (aluna A). A topografia converte-se assim em egografia. Eu sou o meu espaço, chego a mim como quem entra em casa.

5.     Escrever sobre (escrever o) espaço-quinta constitui assim sobretudo um modo de se pensar a si mesmo na relação com o dito espaço. Além disso, escrever não é precisamente fixar a pessoa ausente (Freud), aquela que não permanece porque o tempo passa? A ilusão da intransitoriedade gráfica faz deste projeto um modo ainda de dizer: fixo a palavra como quem tranca, estando do lado de dentro, a porta de casa.

6.    Sucedem-se, assim, as imagens de nidificação, de protecção. O espaço (o tempo que nele se manifesta) abraça-nos (o outono abraça-nos com os seus tons castanhos, amarelos e vermelhos que cobrem o chão de alcatrão da escola – aluna B), agasalha-nos (cores quentes outonais) em face dos elementos frios (o alcatrão, tão mais da cidade).

7.     Em espaços como este brinca-se cumprindo-se o ensejo gregário que um espaço topofílico (doméstico, familiar) engendra: brinca-se a criar “tribos” e consequentemente cabanas, correr pelos montes, tentar trepar a árvores mais altas (aluno D). Com a proteção que é própria do espaço familiar, gregário, tribal, lançamo-nos no movimento ascendente e perigoso, sentimos que podemos enfrentar o desafio: trepamos a árvores, lançamo-nos em coisas mais altas.

8.    Estabelecemos com o espaço-quinta a relação que o núcleo familiar promove, uma relação afectiva e volitiva com uma espacialidade i-mediata (não mediada) ao eu, à margem do mais estritamente racional. A experiência da nossa relação com ele é fundamentalmente do nível dos sentidos, da sensibilidade: Vai ser fácil recordar o início do ano letivo, quando o Verão parte relutantemente, sentir e cheirar o Verão que emana dos eucaliptos monumentais da escola (aluna A). Este é um espaço que nos sensibiliza (aluna B), tudo nele nos é tão natural (não convencional, mas antes patético) que sentimos que nos acolhe, que se transfigura de modo a que possamos integrar-nos nele. Um dos modos comuns da mencionada transfiguração é a imagem da antropomorfização. O espaço personificado é aquele com o qual posso dialogar: as nossas árvores monumentais começam a queixar-se da falta do sol, começam também a sentir as primeiras chuvas e ventos (aluna C).

9.    O apelo ao imediato que em mim ocorre no espaço-quinta prefigura a natureza como experiência, como aquilo que eu experiencio: estudar numa quinta é experienciar a natureza diariamente e aprender a ser ecologicamente sustentável na prática (aluno E). Aprender a ser na prática, onde nos ligamos ao que nos rodeia, através do fluxo emocional que projectamos neste pequeno universo: estudar numa quinta faz-me sentir ligada à natureza (aluno F). Como quem tem a pupila ligada ao coração.

10.                       Dialogando com este espaço, um espaço, já o vimos, de intimidade, guardo em mim um segredo dele (os intervalos no chão de alcatrão a apanhar sol e a ouvir os pássaros cantar uma melodia secreta de um compositor anónimo – aluna C). Se partilhar um segredo é confiar, é tornar-me de algum modo dependente de outrem, guardar o segredo de um espaço é também sê-lo: Estudar numa quinta integrou-me num espaço com elementos naturais (aluno G). Há um processo relacional que desindividua, pelo menos ilusoriamente, o eu, que mobiliza nele uma vocação para a pertença (o anonimato, etc.)

11.  Principiar a habitar uma casa é também aqui, como sempre, principiar a excluir, a revelar o mundo em negativo: estudar numa quinta permite perceber melhor o que é a cidade (aluno H).

12.O espaço surge como uma força, como um dínamo: estudar numa quinta faz com que possamos ter a oportunidade de crescer num ambiente mais dinâmico (aluna I). Como qualquer força, o espaço torna evidente ao eu um percurso palmilhável entre o dado e o projetado como desejo: estando aqui, aspiro a chegar a um ali mais ou menos definido e por isso me movo, não me dou por satisfeito, procuro, perscruto, pretendo. Para que ela seja a minha, nunca me sinto completamente feliz em casa.

13.Esta orientação teleológica, futurante, do espaço-quinta endereça o sujeito que o habita para uma série de possíveis: estudar num colégio com tanto espaço livre aguça em mim a curiosidade sobre o que me cerca (aluno J). Porque o espaço está ainda livre, desejo ocupá-lo. É num espaço assim que nos descobrimos agentes. Este não é só já um espaço de repouso, de conforto maternal, segundo ainda Bachelard. Nele arquitecto um ambiente de harmonia e de esperança (aluna C). O olhar futurante que a partir dele atiro para o mundo faz com que o espaço-quinta se abra à construção. Nós construímos esse espaço à medida que nos construímos: nós somos, porque a escrevemos, a história desta casa.



sábado, 25 de outubro de 2014

Isto da literatura foi um engano, pensei: escrever foi um engano. Mas a voz dela ressoa dentro do silêncio como se fosse um piano tocado dentro do mar, foi este o verso que lhe disse, é tão bonito, respondeu-me, é tão bonito estar contigo mergulhada contigo dançando dentro do mar

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Numerosas linhas - sobre o Livro de Horas de Maria Gabriela LLansol



A dimensão intimista e averbativa do diário de Llansol não prescinde de uma relação de continuidade com a sua obra ficcional, criando um hibridismo genológico que lhe é caro e que confirma, com Pachet, que o produto da escrita do diário é uma enunciação histórica que recria – e que, portanto, não replica – o tempo histórico. A questão temporal constitui, com efeito, a matéria sobre a qual o texto diarístico llansoliano trabalha, aqui associada a um conjunto de pretextos de auto-reflexão e de excursos pela génese da própria escrita, ligados às dificuldades e contingências da sua vida na Bélgica, do ponto de vista material, geradores de um certo desalento, de um certo tom geral de crise intercalado com a habitual dimensão solar, epifânica, inscrita no quotidiano revelacional de uma ordem biunívoca eu-universo própria da sua escrita.

Face à evidência da crise de uns dias desprovidos de sentido imediato e que dificultam o próprio processo da escrita, pela escassez de tempo e de recursos financeiros, encontra aquela, a escrita, a sua primeira qualidade, a de constituir um simulacro de fixação do próprio tempo, numa ilusão de perpetuidade gerida a partir de uma cristalização de um agora enunciativo que recusa o conteúdo precário daquilo que as palavras afirmam. Não é assim de estranhar que se encontrem nestes escritos, como é aliás costume em Llansol, diversas páginas sobre o acto da escrita como um modo de desprendimento da contingência exterior ao processo mesmo de escrever, com os seus episódios institucionais (os pares, a História da Literatura, as academias, os prémios, os circuitos editorias), como uma inscrição da escritora no lado da língua, gozando de uma outra espécie de temporalidade, à maneira de Parrett, que entra no vórtice da repetição espiralar que o discurso do e sobre o eu constrói como modo de sobrevivência, de resgate do próprio, às malhas do tempo.

Assim, o texto diarístico llansoliano é desses que se podem ler (como as suas ficções que o são e não são tanto, ou quase, quanto os seus diários) sem uma ordem específica, numa absoluta rasura da ordem do tempo linear e de uma afirmação do instantâneo e do disperso, do casuístico como manifestação de uma recusa de sujeição à cronologia. Este casuístico transporta-nos para um registo do rotineiro, dos gestos que justamente pressupõem aquela espécie de afecto pelos seres e pelas coisas que apenas a repetição, o serem todos os dias os mesmos e novos a um tempo, ocasiona. A vida animal e vegetal, a vida da natureza, que encontra no olhar do eu enunciador uma evidente simpatia, que decorrerá precisamente do seu carácter a-cultural, não civilizacional e, como tal, ciclicamente reprodutível, porque não demarcada por uma categorização associada a centros discursivos estabelecidos exteriormente aos próprios fenómenos, esta vida, dizíamos, serve frequentemente, não por acaso, de ignição à escrita, à vocação da língua.

Parece ser assim possível dar razão a Blanchot quando afirmava que a escrita de um diário é ainda um modo de colocar o eu sob a protecção dos dias comuns e a própria escrita ao abrigo da aparente aleatoriedade associada à banalidade dos motivos desses dias, gerando uma regularidade discursiva que torna coincidentes o viver e o escrever, porque o escritor do diário é aquele que vive em pose discursiva e escreve revivendo. Llansol vai-nos dando por isso conta de uma procura de uma radicalidade (de inscrição de raízes no seu próprio tempo) como quem funda pela escrita o espaço que o tempo da vida real – da vida sem ela, sem a escrita – não deixa fixar. A relação ambígua, uterina, com Portugal, a mãe desejada e fantasmática que não deixa que o sujeito verdadeiramente se inicie na sua maturidade sem ela, na sua orfandade adulta, é aqui revisitada outra vez. Portugal e a sua língua estão constantemente no horizonte do texto, mesmo quando a Casa começa a ser Herbais e se regista a maravilha da constatação da transposição de uma relação de pertença-exílio que a autora-protagonista mantinha já com a terra-mãe, e que faz desta uma autêntica figura geográfica substituta do país de origem, motivo que obsessivamente revisitará ao longo da sua obra.


Esta contínua deslocação do espaço de radicação do eu tem consequências ao nível da própria disposição do olhar do mesmo, que é o olhar de uma nómada que vive permanentemente num entre-lugar (a que sente, a um tempo, pertencer e não) para a qual a escrita, e outra vez a escrita, serve de paliativo, de espaço que abriga uma regularidade que anula essa espécie de dualidade delirante, terreno da estética moderna, que Deleuze e Guattari adjudicam à experiência da esquizofrenia e que exige uma esquizoescrita libertadora, finalidade da literatura de Llansol. Nela começamos assim a compreender melhor a dimensão autocentrada da proliferação de ecos, de relações entre os distintos textos que compôs, da migração de figuras, motivos, actores e fragmentos entre diários e ficções, da criação de duplos e de substitutos que procuram preencher de palavras o espaço permanentemente esvaziado pela escassez do tempo que assinala a existência humana.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Um dia pediu-me diz-me por favor um verso de Kavafis, mas eu não sei, isto é, eu não tenho nenhum aqui de memória, posso ler-to depois, se assim o desejares, respondi-lhe, mas ela não, diz-me de qualquer forma, diz-me um verso de Kavafis, diz-me um verso que fale de Ítaca, mas se Ítaca morreu, disse-lhe, foram tantos, sei lá, que já o disseram. Ainda assim fiz-lhe a vontade, eu fiz-lhe sempre a vontade, porque sabia bem que a comoção tem os seus limites, mas também a sua virilidade, foste tu próprio quem mo disse, a vontade é o nosso excesso a querer conquistar um espaço para dançar nas barbas da morte, às portas da inteligência.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Ter um nome diferente - sobre «Bonsoir, Madame» de Manuel de Castro



2014 trouxe-nos uma das mais importantes publicações das últimas décadas em Portugal, selecção da poesia de Manuel de Castro, elemento precocemente desaparecido do anti-grupo do Café Gelo pelo qual passaram com maior ou menor regularidade nomes como António Barahona, João Rodrigues, Saldanha da Gama, Raul Leal, Ernesto Sampaio e Herberto Helder, na sequência da dissidência surrealista e em torno da figura de Cesariny.

Encontramos aqui a reprodução de Paralelo W (1958) e Estrela Rutilante (1960), bem como de uma série de textos dispersos em publicações diversas que se integraram num território editorial avulso e marginal. Os livros de Manuel de Castro aqui reunidos, publicados a expensas do autor, com tiragens limitadas, “dádivas à balda pelos cafés e tascas, publicidade nenhuma”, como a propósito dos mesmos recordava Luiz Pacheco em número do jornal «República» de Outubro de 1972, recusam assim submeter-se ao mercado da literatralha proliferante, assumindo-se como autêntica poesia underground, condição que infeliz ou felizmente continuarão a merecer mesmo após esta edição.

É na propensão tóxica do movimento de contra-cultura que o surrealismo afinal constitui que compreendemos a decisão desta atitude de permanente dinamitação dos discursos vigentes, de questionamento dos centros de emanação desse mesmo discurso relativo às linhas epistémicas de leituras estética e ideológica. São traços próprios daquilo a que com perdão dos próprios surrealistas designaríamos por carácter civilizacional da sua literatura, a qual postula decisivamente uma demarcação do locus de enunciação dominante: “este é o tempo em que morrem os príncipes/ao sol-posto num final sereno/e se iniciam os ritos bárbaros/da Grande Velocidade”. Esta demarcação pressupõe, evidentemente, uma refundação do fazer poético por uma geração com pretensão, desde logo, de produzir uma simbiose da multiplicidade humana que concentre um esforço de relação primária com a existência, no cumprimento de um absoluto quotidianamente negado: “Sobre os cadáveres assim incorruptíveis/dos velhos príncipes desagregados no mar/passam os navios/e a geração angélica e terrível/talha o seu destino sobre-humano/onde a noite vai expulsar os astros/iniciar-se, e ter um nome diferente”.

A conotação mística dos versos citados sublinha uma adesão a uma espécie de condição mágica da poesia e da palavra como propulsoras de uma iniciação a um absoluto ou a uma supra-realidade que Manuel de Castro enuncia na sequência daquela “febre de Além” que afirma consumi-lo. O acesso ao supra-real justamente preconiza de novo uma relação total e primária do sujeito consigo mesmo, relação essa alicerçada numa concepção afim de um certo cratilismo constitutivo da linguagem, para cuja realização é urgente, de uma urgência moral, desbastar a palavra feita superficial pela sua subordinação aos sistemas de enunciação a que a mesma é votada diariamente: “Falo-vos exemplarmente do éter/nenhum homem será glorioso na morte/enquanto não se tornar total/e não possuir seu nome exactamente”. A relação com o eu total e genésico ancora numa inclinação para uma atenção aos elementos não meramente toleráveis do ser humano, numa prática ostensiva da recusa da normalidade como vício de um sistema de vida afinado de acordo com os discursos da superficialidade da relação no domínio do espaço social, ecoando a concepção de um génio em rebeldia que exerce uma liderança espiritual de remanescência romântica: “Nós os intocáveis, os imundos, recusamos/nossa vida à condição comum./Porque é imortal a rosa que nos leva/entre o dia e a noite./Nós os derrotados, impuros, oferecemos/nossa miséria a um significado/oculto e diferente/…/ Nós os últimos dos últimos coroamos/impérios e jardins”.

Não surpreende, por conseguinte, o hermetismo declarado desta poesia, de foro orientalizante, e que é estritamente técnico, fundamentando uma prática do estranhamento literário que projecta uma estética da velocidade e da intensidade como mecanismos de irrupção da tencionada relação em profundidade do sujeito consigo mesmo. “Asteróide em fuga”, uma das composições mais explicitamente metapoéticas de Manuel de Castro, dá conta da posição técnica aqui enunciada: “Cada centímetro cúbico da noite/ se adquire no precipício do jogo/ com as palavras decompostas livres propulsoras/ lubrificadoras de ossos vorazes/ no ritmo largo das muralhas vencidas.// No tempo permanente/ o exercício de extremo limite/ amplifica os ângulos/ destrói as máquinas antigas/ propõe a celeridade como estilo/ no regresso possível à pureza dos nomes// Deixa correr célere a pena sobre o papel branco e gelado/ semeado de gotículas azuis que são as palavras/ umas a seguir às outras velozmente”. Eis a reincidência da defesa de um novo paradigma assente num certo cratilismo (a pureza dos nomes) revelacional do eu para o qual a estética da “celeridade” contribuirá na medida em que permitirá a libertação das relações profundas entre imagens e palavras contra o discurso das “máquinas antigas” que se cristalizaram numa superficialidade enunciativa que despoja as palavras da verdade que enunciariam. Uma aproximação a um êxtase verbal promoverá, assim, uma relação mais sensorial com o mundo (“nudez-carícia/ o corpo inclina luz sobre a cidade/ luz imóvel/ extensa/ musical”), relação essa em que emerge pelo menos uma apropriação de um supra-real em que a convencionalidade é minimizada e em que o sujeito se revele em toda a sua ambígua natureza, em que contacte consigo mesmo a partir de uma comoção verbal que promova uma relação estésica com o mundo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Quando ela repete o meu nome, eu poderia, se quisesse, adormecer dentro dessa palavra, aproximar-me dos seus lábios cintilantes e morder a raiz de sombra que nela define o círculo. Poderia mexer-me dentro dela fazer-lhe cócegas até sangrar, nos seus caminhos montanhosos perder-me lavar-me nas águas que a perfumam. Poderia, depois do trabalho, remendar-lhe as bainhas, esperar que anoitecendo repousasse, fechar-me na luz que irradia do seu coração tão desesperado quando se senta à minha mesa e desarruma os meus dias.

sábado, 18 de outubro de 2014

            Ela entrou no silêncio como quem entra em casa.
         Lia demorou-se um pouco com os sacos de pano na mão. Olhou a sala. Cadeiras, jarras, loiças, malas. No seu rosto não havia o menor sinal de surpresa. Era quase como quem não visse.
         Avançou em silêncio para o centro da sala. Poisou os sacos, ambas as mãos sobre a mesa. Depois levou as mãos ao ventre como se apontasse o útero. Como se cercasse o lume com ambas as mãos. Como se dissesse olha             como se eu lhe dissesse diz            como se ela dissesse nada    
         É que esta casa é só chão é sal é raiz


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Falta de informação



Está frio. É preferível fundir as mãos na névoa
como um pano húmido, e rectificar a pontaria.
Terminada a operação, o cirurgião lava as mãos
e a enfermeira sente estremecerem-lhe os seios.
Não acordem o rouxinol que dorme no gume do bisturi,
inclinem-se sobre a pia de água benta
e comprovarão que ficou gelada em nome do pai, do filho e do espírito santo. Tombem-se sobre a mesa
de operações e sentirão o calor do candeeiro,
e sentirão avançar comboios pelos ladrilhos
e tijolos com carruagens carregadas de pedras,
e escapulários galhofeiramente agitados pelo vento.
Porque está frio e os joelhos adoptam a forma de rostos
e as redes dos pescadores escorrem entre as rochas,
e além disso estou profundamente aborrecido
de tanto frio, e tanto sal, e tanta solução de continuidade.
Não entrem nessa loja de aparelhos eléctricos
que duplicam o frio com os seus dentes de alumínio,
não penetrem na boca do próximo nem pronunciem a palavra liberdade,
porque agora caiu inteira da torre para o reservatório,
chocou contra o gelo e gretou-se como um lábio adolescente,
devo dizer-vos para que deixem de fumar porque o fumo transforma-se instantaneamente em estalactites,
tenham cuidado com os cabos da luz e os véus de noiva,
abram a porta com cuidado não vá aparecer o frio com a sua roupa de lata,
deixem de sorrir se querem segurar um raio entre os lábios,

porque está frio e comprei o jornal para comprovar uma vez mais a falta de informação.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

         Falo de uma mulher suspensa no olor fatigado.

         Uma mulher que tece as orlas dos cabelos intermináveis.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Satisfaz-me mais que o mar


Vejo-te além recostado contra o dique de Havana, a camisa aberta e sandálias e                                                                                                     [grandes óculos escuros,
à tua esquerda ergue-se o Morro e, ao fundo, à tua direita, um barco petroleiro                                                                                                               [rumo ao horizonte,
a balaustrada brilha inundada de sol e sobre ela recorta-se a sombra do teu                                                                                                                                             [braço,
devem ser onze da manhã, que fazes aí Blas de Otero, estás a olhar para quê ligeiramente inclinado para as fachadas carcomidas pelo salitre,
em que pensas, aonde irás quando interromperes o que estás a fazer e seguires                                                                                                                     [o teu caminho,
vais subir pelo Prado, ou por Águila, ou irás até à Rampa, tu o basco universal                                                                          [mas menos vaidoso que o moguerenho,
tu, vagabundo, poeta maldito da burguesia e da polícia e simplesmente da CIA,
que fazes aí no dique, de costas para Miami como Maceo ou qualquer cidadão                                                                                                                                   [decente,
onde vives, se é que vives nalgum sítio, no Havana Livre, na Víbora, no Riviera,
ou simplesmente no meio da Revolução, abrindo os olhos até às sobrancelhas para aprenderes tudo o que há de bom, e o talvez evitável,
tu calas,
tu continuas apoiado contra o dique
com a tua camisa despida
e a tua alma despida
e a tua palavra sempre prestes a brotar para resguardar a vida e a  justiça e a                                                                                                                                    [dignidade
e a paz e a violência de que precisam os pobres do mundo aos quais

há muitos anos entregaste definitivamente a tua sorte.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

        Quando, passados apenas alguns dias, entrei com ela pela portada densa de folhagem, a Lia fechou-se num silêncio que depressa se propagaria a todas as coisas, como um cancro.
         Fechou-se no silêncio como quem se fecha em casa.


domingo, 12 de outubro de 2014

O nosso reino era assim - sobre um conto de Julio Cortázar


“Final do jogo” tematiza a emergência da adolescência como jornada identitária, a partir de um jogo que três raparigas encenam diariamente num caminho-de-ferro. Esse jogo constitui a dimensão performativa, tacteante, desse projecto de maioridade, definido num espaço de viagem (identitário, por definição, segundo Guattari). O espaço do jogo constitui um reino alheado do mundo da casa, através de uma passagem iniciática para um progressivo afastamento do espaço topofílico (Bachelard), do espaço da casa familiar, passagem essa necessária para a construção da individualidade.

A entrada em jogo de um quarto elemento, figura masculina erotizada, serve de pretexto à vocação de individuação das três raparigas, que até então se dispunham numa ordem gregária apaziguada, despoletando nelas a dimensão ambígua das relações adultas (dispostas entre eros e tânatos) que agudiza a alteridade mútua, vista conflitualmente como déficit (Freud), passo necessário à gestação da identidade (Ricoeur). Pouco a pouco, elas vão descobrindo o mundo das relações ao modo do negócio, da diferenciação, o qual anula o ócio da brincadeira infantil, prenunciando o final do jogo, o final do espaço lúdico (Schiller) como espaço da ilusão do real, descobrindo a tristeza, a mentira e a morte.

sábado, 11 de outubro de 2014

E ela levava as mãos à água, mergulhava os dedos na película imóvel que uma armação de lodo seco sustentava, nos limites dum poço arquitectada. Molhava o rosto, mas para tal primeiro mexia com os dedos na água, e desenhavam-se círculos uniformes, movendo-se para as margens. Havia um reflexo que oscilava quase até a obrigar a mergulhar nele os dedos os pulsos ou os braços, para suster algo que parecia escapar-lhe, afundando-se na água, como uma folha desmembrando-se lentamente. Era a sua imagem e no entanto era-lhe difícil reconhecer os olhos que a observavam entre os vincos da superfície vítrea, nos intervalos das membranas que se sucediam e que negavam à sua face a transparência prometida à água, a claridade que os espelhos imitam sem exactidão, pois desconhecem o perigo, a possibilidade duma pedra ou duma lágrima que invada a sua vulva quieta sempre aberta, susceptível de ser violada por uma aragem, um fio de sol, uma palavra pronunciada por alguém que encostasse às pedras os lábios que circundam o silencioso magma, vale de silêncios onde a sua imagem para sempre retida estremecia quando ele (tu?) passa (passas?) lá no alto das montanhas espelhadas.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O entendimento está contaminado pelas ocorrências banais e decisivas da minha vida, quando pergunto por ela, o que é esta música insistindo que a infância existiu, que existiu o tédio, os lugares cuja substância provei num dado momento com uma certeza infinda.
Peço um instante de silêncio, sem nenhum mundo, sem o esgar do que me é contemporâneo a limitar a memória. Mas em nenhum momento me afasto de mim, sombra errante que eclipsa aquilo que os outros dizem ser o real, a verdade, todas as substâncias amorfas das suas certezas determinadas pelos pequenos fracassos de existirem com a mesma inevitabilidade de serem actos contínuos sobrevoando apenas o coração da realidade, sem nunca mergulharem no rio cujas águas paradas espelhariam todos os pequenos nadas a que chamam verdade.

Isto existe, porém, poderia alguém garantir-me neste preciso instante, fundamentando a experiência, o real, o próprio sono que me tolhe. E eu estaria tentado a falar-lhe uma vez mais da morte, cujas humildes pastagens conquistam ao fogo uma oblíqua chuva sobre os olhos derramada.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Seis poemas de Carlos Sahagún


A ESTAS HORAS

Nas bocas do metro ninguém espera
ninguém. Vêem-se apenas mãos,
extremidades mutiladas. Sob
a terra ouvem-se comboios e definhas,
ouvem-se detonações onde brilha
um instante a tua ausência e o meu infortúnio.
Nada, de resto, está mudado.
O tempo é ainda uma ponte escura,
metálica, condenada, ou certa música
que atrás de mim dura destecendo-se.
E tu, mensageira do outono,
já não poderás perder-te nesta névoa.
 Na torre, um sentinela aguarda,
traça sinais bem visíveis, sente
o preguiçoso ritmo dos teus passos
pela vereda das indecisões.
 Haverá outro tecto para teu refúgio?
Eu próprio, ó morte, sou a tua casa.



RIO
                       
O rio adolescente perdia-se, na planície,
                        gozosamente triste, como o coração.
                                                           HÖLDERLIN


Chamaram pós-guerra a este troço de rio,
a este viveiro de mortos, à cidade, aquela
dobrada como árvore velha, sempre cravada
na terra como se fosse uma cruz. E gritaram:
«Alegria! Alegria!»
Eu era um rio nascente,
era um homem nascente, com a tristeza aberta
como uma porta branca, para que o vento entrasse,
para que entrasse e agitasse as folhas
do calendário imóvel. Castelos no ar
e, embora no ar, derrubados, os sonhos
feitos pedra, madeiras que não querem arder,
raios de sol manchando os vidros mais puros,
altíssimas pombas que já não conseguem voar…
Estão a vê-lo? Vocês, os que vêm de longe,
vocês que têm o braço livre como as águias
e levam nos lábios uma rubra alegria,
passem, fitem-se em mim, tenham fé. Eu era um rio,
eu sou um rio e tenho marcado a fogo o tempo
da dor bombardeada. Minha idade, minha idade de homem,
não o esqueçam, um dia perder-se-á na terra.


A HISTÓRIA COMEÇA AQUI

A história começa aqui. Foi numa tarde
em que as pombas se haviam tornado
mais brancas, mais tranquilas. Como sempre
saí para o jardim. À volta não havia
ninguém: a mesma flor de ontem, a mesma
paz, as mesmas janelas, o mesmo sol.
À volta não havia ninguém: uma árvore,
um balcão, cinza naquele monte
longínquo. À volta não havia ninguém.

Mas este vento o que é, quem me apanha
o coração e mo levanta tenso,
e o funde e mo levanta tenso? Uma
rapariga azul na orfandade do ar
arrumava os pássaros. As suas mãos
acariciavam com piedade a árvore,
e o balcão, e aquele longínquo monte
em cinzas. O jardim ardia ao sol.

Olhei-a. Nada. Olhei-a outra vez,
e nada, e nada. À volta, a tarde.



COISAS INESQUECÍVEIS

Mas antes de tudo pensa nesta pátria,
nestes filhos que serão um dia
nossos: o menino lavrador, o menino
estudante, os meninos cegos. Diz-me
o que vai ser deles quando crescerem
e forem altos como eu e desamparados.
Por mim, pelo nosso amor de cada dia,
nunca esqueças, peço-te que não esqueças.
Nascemos os dois com a guerra. Pensa
no quão má foi aquela guerra para
os pobres. O nosso amor podia ter sido
bombardeado, mas não foi.
Os nossos pais podiam ter morrido
e não morreram. Alegria! Tudo
esquece. É o amor. Mas não. Existem
coisas inesquecíveis: esses olhos
teus, aquela guerra triste, o tempo
em que virão os pássaros, as crianças.
Acontecerá em Espanha, nesta terra
má que tanto amei, que quero tanto
que ames tu até chegares a odiá-la. Amo-te,
gostaria de não me lembrar da pátria,
deixar tudo aquilo para trás. Porém,
não podemos alheadamente
viver e pronto, amar-nos, onde um dia
morreram tantos justos, tantos pobres.
Ainda que apesar do nosso amor, lembra-te.




PRAIAS DE EXMOUTH

Pergunto-me se um homem, diante destas praias,
tem o direito de que se lembrem
do seu amor, do que outrora pronunciaram
os seus lábios, dos seus passos pelos caminhos
ao sol, ou das suas mãos
que na noite se fundiam de vez em quando, ou iam
entrelaçadas às tuas
como a um presente vivo de cristais.

E se assim for, se tu me esperares,
hei-de estender os braços neste mar do norte
e atracarei em ti.
Porque se neste instante tu estás além com conchas,
estreitando o teu olvido às minhas palavras,
e se as sentes como verdadeiras,
eu não estou esquecido.

Dez, doze barcas de pescadores,
como se atadas também à minha esperança,
estão aqui e estão a puxar-me
a mim mesmo, ou talvez
não estejam tão perto assim, mas na distância.
O meu coração poderia recordá-las,
conduzi-las a outro tempo.
Barcas que vi a teu lado certa manhã,
em Espanha, a dois passos
da felicidade de estar contigo.



OESTE A SÓS

Eu estava lá, debaixo das rodas
de uma locomotiva, na Califórnia.
Longas mãos do vento derramavam
areia em meus olhos, ouviam-se cascos
de cansados cavalos invisíveis.
Em volta, o ar aprisionava
a tristeza do Oeste a sós.
E eu não escutava nada, resvalava
pelo deserto ensanguentado o rio
da memória até à sua fonte: tu
soluçavas no fundo da noite,
filmando entre os teus lençóis longínquos
a minha repetida imagem fugitiva.
Assobiou de novo a locomotiva
e no silêncio que se seguiu não houve
ninguém para salvar-me. Desde então
tudo foi amargo e sem retorno como
um oásis na aridez do tempo.
Assim, enquanto a luz desfalecia,
procurei em vão a chuva redobrada
sobre o ardor da nossa juventude
e, desandando os caminhos, desejei
regressar vencido a casa, descer
à segurança do teu quarto, não ter
sonhado nunca com esta viagem
impossível, frustrada enfim, à América.