domingo, 30 de novembro de 2014

O ídolo das Cícladas - Julio Cortázar



Antes de voltar a olhar para ele, Morand vomitou no canto do atelier, sobre os trapos sujos. Sentia-se vazio, e vomitar fez-lhe bem. Levantou o copo do chão e bebeu o que restava do whisky, pensando que Thérèse chegaria a qualquer momento e que era necessário fazer alguma coisa, avisar a polícia, explicar-se. Enquanto arrastava com um pé o corpo de Somoza, até expô-lo inteiro à luz do reflector, pensou que não lhe seria difícil demonstrar que agira em legítima defesa. As excentricidades de Somoza, o seu alheamento do mundo, a evidente loucura. Agachando-se, molhou as mãos no sangue que corria pela cara e pelo cabelo do morto, olhando ao mesmo tempo o seu relógio de pulso que marcava as sete e quarenta. Thérèse devia estar a chegar, o melhor era sair, esperar por ela no jardim ou na rua, evitar-lhe o espectáculo do ídolo com a cara jorrando sangue, os fiozinhos vermelhos que resvalavam pelo pescoço, contornavam os seios, que se juntavam no fino triângulo do sexo, escorriam pelas coxas. O machado estava profundamente sepultado na cabeça do sacrificado, e Morand agarrou-o balanceando-o entre as mãos pegajosas. Empurrou um pouco mais o cadáver com um pé até deixá-lo contra a coluna, farejou o ar e aproximou-se da porta. O melhor seria abri-la para que Thérèse pudesse entrar. Apoiando o machado junto à porta, começou a tirar a roupa, porque estava calor e cheirava a um ar espesso, a uma multidão encerrada. Já estava despido quando ouviu o ruído do táxi e a voz de Thérèse dominando o som das flautas. Apagou a luz e, com o machado na mão, esperou atrás da porta, lambendo o gume do machado e pensando que Thérèse era a pontualidade em pessoa.

Final do Jogo
Cavalo de Ferro, 2014

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Cante Meu


O nosso reino era assim - sobre "Final do Jogo" de Julio Cortázar (segunda parte)



Assim, a insuficiência de Leticia faz com que lhe seja consentida a plenitude da infância, o que acabará por fazer com que se transforme em líder dos destinos das irmãs: «La primera en iniciar el juego era Leticia, la más feliz de las tres y la más privilegiada. Poco a poco se había ido aprovechando de los privilegios, y desde el verano anterior dirigía el juego, yo creo que en realidad dirigía el reino». Leticia não estava arredada do jogo. Pelo contrário, controlava-o e convertera-se em protagonista do mesmo. Este consistia no sorteio de determinadas performances (as raparigas fariam de estátuas ou caricaturariam atitudes) que tinham como público – fugaz e transitório – os passageiros dos comboios que passavam. Ora a entrada em cena de um quarto elemento concreto, de um espectador que ganha uma voz e, progressivamente, um corpo (arremessando bilhetes, acenando da janela e finalmente vindo ao encontro das irmãs), alterará definitivamente a lógica deste jogo (é então que elas começam, inclusive, a violar as suas regras, deixando de sortear e passando a decidir quem deveria fazer a performance). Esta figura masculina, ingenuamente erotizada pela fantasia idealizante das irmãs, serve de pretexto à vocação de individuação das mesmas. Na procura de um núcleo re-familiar que lhes permitisse cortar definitivamente a ligação à casa materna, a potencial relação com a figura masculina transforma-se num projecto ontogenésico, mediante uma individuação que é ensaiada a partir da dinamitação das relações habituais sob o signo do conflito e portadora de angústia. Gera-se a vocação erótica como desejo de religação a uma figura de repouso que não deixa portanto de ser simplesmente uma hipóstase do lugar maternal. É que Cortázar não nos oferece uma, mas três imagens deste desejo de re-fundação familiar pelo encontro amoroso com um estrangeiro que as colhesse em plena viagem. Com o aparecimento de Ariel, o rapaz idealizado, as três raparigas descobrem-se de súbito rivais, o que agudiza a alteridade mútua. A tomada de posse de uma enunciação autónoma, da expressão de um eu volitivo, que assinala a transição para a formação plena da identidade, de acordo com Lacan, corrompe, naturalmente, a ordem gregária que estas três irmãs começavam a perder, quando Leticia se faz cada vez mais Cinderela, eleita pelo príncipe encantado, e as suas irmãs descobrem a pulsão da morte própria das raparigas más que há dentro de todas as raparigas. O facto de a narração nos ser apresentada na perspectiva de uma destas irmãs permite-nos compreender como a revelação de uma autoimagem implica o susto do confronto com a estranheza do eu a si próprio, próprio do unheimliche freudiano, e que compreendemos pelas reflexões da narradora, que interpreta com certo espanto as suas reacções dúbias, entre o ciúme e o amor, à condição de Leticia e à preferência que por ela nutre Ariel. Por outro lado, esta autoimagem é inevitavelmente desajustada à idealidade projectada, gerando aquela consciência angustiada mergulhada numa situação que Odier designa de sphaleia, de confronto com a diluição de uma promessa que as condições, limitantes, lhes negam. Ora a relação ingenuamente desejada pelas três raparigas é constitutivamente impossível: para Leticia, porque ela se autoimpõe os limites que a sua condição física despoleta, recusando encontrar-se fisicamente com Ariel; para as suas irmãs, porque este não as deseja; e para as três porque o rapaz que projectam não existe, é figura de uma idealização que, como tal, o impossibilita.
         É fácil compreender, assim, porque se reveste o sonho da irmã-narradora de um clima de pesadelo, mesmo que tendo como cenário o espaço do reino que as irmãs se inventaram para sua realização. Ela sonha com e teme a um tempo os comboios que lhe prometem a sua maioridade: «Esa noche yo volví a soñar mis pesadillas con trenes, anduve de madrugada por enormes playas ferroviarias cubiertas de vías llenas de empalmes, calculando con angustia si el tren pasaría a mi izquierda, y a la vez amenazada por la posible llegada de un rápido a mi espalda o que a último momento uno de los trenes tomara uno de los desvíos y se me viniera encima». É que o jogo apresenta uma dimensão ambígua, sendo simultaneamente indutor da experiência de libertação e de falência desse mesmo intento. Como vimos, o jogo das raparigas é um análogo da expressão artística, pela sua dimensão performativa e iminentemente autorreferencial, de predominância estética e não instrumental. Através deste jogo, as raparigas prefiguram o conjunto dos possíveis a que se abrem e que são definidores da sua própria existência, da formação da sua própria persona. Porém, na prática, este jogo limita-se a reiterar as condições que limitam a separação da casa familiar. Ora vejamos, por exemplo, como o jogo se dividia numa manifestação mais infantil e numa manifestação mais adulta, não abdicando de nenhuma das duas. Se as estátuas que as raparigas encenavam constituíam figuras-modelo de um olhar infantil idealizante (Vénus de Milo, bailarinas, princesas), as atitudes representavam caricatural e até mesmo grotescamente o mundo dos adultos: constituíam representações da inveja, da vergonha, do medo, do rancor, do ciúme, da maledicência, do desalento, do desengano, do horror. O jogo perpetuava assim aquela autopolémica em que as raparigas já se encontravam ancoradas, à excepção de Leticia que, sugestivamente, “ia melhor como estátua”, não permitindo, portanto, resolver essa cisão interior. Mais do que nunca, o território eleito pelas raparigas para formar o seu reino revela a dimensão de não-lugar que lhe era inerente como espaço de trânsito, não antropológico, onde não é possível a conversão do geométrico em existencial, na terminologia de Merleau-Ponty. Assim, há neste reino uma dualidade topológica que espelha a própria dualidade humana que as raparigas começam a aperceber, postas como estão entre infantilidade e maturidade, indecididas num entrelugar.
         Além disso, a própria promessa erótica destrói o potencial de sucesso daquele jogo, justamente pela possibilitação dessa relação com Ariel. É que a conversão do hipotético amoroso em possível elimina a dimensão puramente estética da performance lúdica das raparigas, que passam a estar movidas por um interesse. É onde o jogo, até então integralmente artístico, adquire uma dimensão instrumental, transitiva, anulando o prazer de jogar em si mesmo, o puro êxtase do imaginário. A gestão das expectativas de Ariel em que as raparigas se demoram, a encenação agora animada pela afectação da pose para um espectador a quem agradar, a quem causar “buena impresión”, dá bem conta de como estas raparigas, querendo separar-se do comportamento dos adultos, aprendem a reproduzi-lo. As suas relações passam a estar minadas pelas intencionalidades, pelos subterfúgios, pelos silêncios, pelos pequenos delitos e pelas mentiras.Tudo isto ocorre, como disse, pela possibilitação que a concretização de Ariel implica: «las cosas cambiaron el día en que el primer papelito cayó del tren» Se outrora as raparigas se perfilavam no seu reino brincando para um público sóbrio, anónimo, impalpável, e como tal incorruptível, quando este se realiza, ganhando um nome e um rosto, o jogo principia a destruir-se, pois depressa o hipotético se converte em possível e o possível em excessivamente real, perdendo o jogo a magia multiplicativa do artístico. E é então, onde surge um outro concreto, promessa de um contacto com a viagem, com a possibilidade da fuga, que pode surgir a desilusão, a disforia – é onde o rapaz não é o que elas imaginaram – que o mundo adulto começa a criar-se como espaço de desencanto. Ariel revela-se, pouco a pouco, na sua imperfeição: um pouco seco, de péssima caligrafia, de uma escola pobre, de olhos outrora azuis afinal cinzentos. Paulatinamente, aquela figura idealizada, cuja dimensão imaginária funcionava ao modo do tabu, do que é intocável, colapsa: Ariel, que teria dezoito anos na imaginação das raparigas e frequentaria um colégio inglês, embora não perdendo algum do seu encanto original, acaba por revelar-se demasiado comum, como uma personagem familiar de uma história repetidas vezes contada.

         Finalmente, quando Ariel particulariza o seu interesse, elogiando Leticia através de um bilhete atirado pela janela do comboio, acaba por minar as relações entre as raparigas, forçando a sua individuação, mas pelo lado da dor. As irmãs de Leticia começam a falar dela nas suas costas, a querer afastá-la do jogo ou, noutras ocasiões, insistem para que, “ya que el otro la prefería, la mirara hasta cansarse”. Este processo de individuação e de revelação das relações conflituais é no entanto travado, no final do conto, pela descoberta da piedade, através do exacerbar do amor fraternal. Quando Ariel anuncia que sairá do comboio no apeadeiro mais próximo para se encontrar com as irmãs, e Leticia decide faltar ao encontro, enviando-lhe uma carta através de Holanda, carta essa cujo conteúdo omisso constitui mais um dos vazios narrativos tão próprios de Cortázar, lançando-nos, a nós, jogadores, numa indecisão fundamental, as irmãs parecem restabelecer com Leticia uma relação de acordo íntimo que julgávamos ameaçada. Após o encontro das duas com Ariel, no qual definitivamente confirmam a impossibilidade da sua relação com ele, descem por uma penúltima vez ao reino: “Quisiera que me dejaran hoy a mí", agregó [Leticia] sin mirarnos. Nosotras sacamos en seguida los ornamentos, de golpe queríamos ser tan buenas con Leticia, darle todos los gustos y eso que en el fondo nos quedaba un poco de encono”. Este arrependimento culmina com a maravilhosa estátua da irmã, a qual, em mais uma imagem da relação ambígua de transgressão/pertença com a figura materna, roubara à mãe um colar que envergaria neste momento derradeiro: «Nos pareció maravillosa, la estatua más regia que había hecho nunca, y entonces vimos a Ariel que la miraba, salido de la ventanilla la miraba solamente a ella, girando la cabeza y mirándola sin vernos a nosotras hasta que el tren se lo llevó de golpe. No sé por qué las dos corrimos al mismo tiempo a sostener a Leticia que estaba con los ojos cerrados y grandes lágrimas por toda la cara». O movimento da narradora e de Holanda para segurar Leticia nos braços dá conta da aceitação de uma condição de parceiras, de auxiliadoras na condição precária desta, uma resignação, afinal, à impossibilidade da individuação. O jogo terminaria ali, e com o final do jogo dar-se-ia o fim da infância como recusa do espaço de familiaridade. No dia seguinte, as irmãs de Leticia regressariam pela última vez ao reino, para confirmar isso mesmo: «Cuando llegó el tren vimos sin ninguna sorpresa la tercera ventanilla vacía, y mientras nos sonreíamos entre aliviadas y furiosas, imaginamos a Ariel viajando del otro lado del coche, quieto en su asiento, mirando hacia el río con sus ojos grises.» O desvanecimento de Ariel, como autêntica perda do comboio da vida adulta, o comboio para fora do espaço familiar, devolvendo a distância de segurança à relação entre jogadores e espectadores, restabelece a ordem da casa. O jogo revela-se, afinal, como puro divértissement, à maneira de Pascal, e nada mais do que isso, quando se dá a plena aceitação dos limites em que as raparigas se acham circunscritas. A tia Ruth cuida de Leticia, em casa, como era próprio da ordem das coisas, Ariel olha para aquele rio que no início a narradora projectara como promessa de um horizonte longínquo, mas no lado mais afastado da carruagem. A porta branca que dava para o reino encontra-se fechada, bloqueando, recalcando, o desejo de individuação das raparigas, que regressarão, podemos imaginá-lo, à rotina doméstica, pelo menos superficialmente mais apaziguada. A presença engolidora do núcleo materno, perpetuada pelas contingências de uma rapariga que requer o cuidado familiar ao qual as suas irmãs por fim se entregam, iniciou-as afinal numa maioridade no próprio seio desse núcleo, de que são as herdeiras perpetuadoras, numa configuração mais ou menos fantasmática. Assim, o final do jogo é e não é, afinal, o fim da infância.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O nosso reino era assim - sobre "Final do Jogo" de Julio Cortázar (primeira parte)



Em “Final do jogo”, Julio Cortázar aborda a emergência da adolescência a partir da encenação de um jogo que três irmãs levam a cabo diariamente num troço de caminho-de-ferro. Vendo passar os passageiros do comboio, diante dos quais apresentam estátuas e encenam atitudes, desenha-se no seu horizonte a viagem como percurso de afirmação identitária, tal como enunciada por Guattari, como promessa de uma partida que a maioridade representaria, rasurando a ligação a um espaço familiar de que procuram desprender-se. Nos domínios deste jogo, nos limites ambíguos de um reino que se inventaram para estender e transgredir aqueloutro da casa familiar, revela-se uma certa topografia a fim de uma superação do sentimento de despertença suscitado por essa ruptura com o familiar que a adolescência constitui, numa demanda de um espaço topofílico no qual fixar a existência individual (transgredindo a ordem gregária da casa materna). As raparigas procuram definir assim um espaço alheio ao da sua familiaridade, fundando um reino – onde carnavalescamente se fizessem rainhas contra a ordem dos dias comuns - e onde o lúdico se sobrepusesse à realidade da asfixia de um futuro comezinho, marcado por uma condição instrumental própria do seu papel doméstico, com existências arredadas do deslumbramento da viagem em que os outros estavam já lançados, e abafadas pelo seu papel de mulheres futuras, como aquelas que perpetuarão a casa e a sua ordem claustrofóbica: «Nuestro reino era así: una gran curva de las vías acababa su comba justo frente a los fondos de nuestra casa. Cuando nos agachábamos a tocar las vías nos subía a la cara el fuego de las piedras, y al pararnos contra el viento del río era un calor mojado pegándose a las mejillas y las orejas. Nos gustaba flexionar las piernas y bajar, subir, bajar otra vez, entrando en una y otra zona de calor, estudiándonos las caras para apreciar la transpiración, con lo cual al rato éramos una sopa. Y siempre calladas, mirando al fondo de las vías, o el río al otro lado, el pedacito de río color café con leche». O olhar infantil descobre no horizonte vislumbrado a partir deste reino de transição, a partir de um contacto iminentemente sensitivo com um espaço próprio de uma hierofania, a promessa “al otro lado”, aquele vislumbre do “pedacito de río color café conleche”. É certo que a predicação do rio denuncia desde logo a sobredeterminação das marcas de familiaridade na relação perceptiva com o mundo (o café com leite lá de casa), o que, conforme veremos, inibe o processo de separação da casa familiar, mas interessa-me agora destacar aquela que é, conforme se tem observado, uma imagem reiterativa na obra de Cortázar, a da pretensão de uma ponte que permitisse transitar de uma realidade que é território da insuficiência existencial a uma zona de infinitas possibilidades de ser. Aquela porta branca a que a irmã-narradora se refere, que abre assim para o reino destas raparigas, onde elas justamente desempenharão os diversos papéis ditados pelo jogo, dá bem conta daquilo que é uma esquizofrenia inerente ao eu e que exige ao sujeito mergulhado numa cisão radical de si a si uma esquizoescrita libertadora, que aqui é sugerida pela dimensão performativa do jogo, que adquire um sentido correctivo, sotoriológico.
Este jogo encena, de algum modo, a dimensão delirante do espaço restrito, convencional, regulado, da casa familiar, emergindo directamente como monstro do seio do sono da razão, da vigilância dos legisladores adultos: «esperando que mamá y tía Ruth empezaran su siesta para escaparnos por la puerta blanca», é preciso que os adultos adormeçam, é na sua letargia que a infância se descobre um horizonte de libertação para a maioridade sem eles. Naturalmente, a transgressão da relação amorosa que abriga aquele núcleo familiar recobrir-se-á de um pendor sádico próprio do ambíguo processo de separação, do desgaste que o pulsional origina nas estruturas do superego, e por isso “la satisfacción más profunda era imaginarme que mamá o tía Ruth se enteraran un día del juego”. Este sadismo constitutivo do afecto dirigido às figuras do universo familiar encontrará ainda, como seria de esperar, uma vítima para uma transferência que tem evidentes traços autopunitivos: o gato, que interessa a Cortázar pela sua dualidade domesticidade/independência, surge aqui como avatar do paradoxo pertença/transgressão em que as raparigas se acham afundadas: «El recurso heroico, si los consejos y las largas recordaciones familiares empezaban a saturarnos, era volcar agua hirviendo en el lomo del gato.» Este exercício da crueldade tem valor de autonegação e é premonitório do destino destas raparigas: aquilo que elas violentam é a sua própria circunscrição a uma existência adormecida num entrelugar, num reino que é, como disse, extensão e transgressão da própria casa. Através dele, elas procuram gerar a confusão e a discussão no seio da cozinha (espaço protótipo da domesticidade), a fim de fugirem para o seu reino, escapando às repreensões maternas que, sugestivamente, as ameaçam com «irem viver para a rua». É bom de ver que aquilo que nesse reino acharão justamente não as libertará, assim como o gato é e não é lá de casa.
         É preciso insistir no detalhe de ser na cozinha que se inicia a fuga para o reino do jogo. Nele, no seio do desempenho das atividades domésticas que, como raparigas, lhes estavam prometidas, as duas irmãs, Holanda e a narradora, descobrem o horizonte do seu futuro caseiro, serviçal, obediente a uma lógica convencional que tão contrária é à da euforia estética e imaginária do seu jogo. E, por isso, estabelecem uma relação conflitual com a mãe e a tia, separam-se do núcleo da casa criando uma facção que as enfrenta, gerando uma pretensa alteridade que lhes permite criar as condições da fuga, tornando-se especialistas em gerar brigas em plena cozinha: «Mamá y tía Ruth estaban siempre cansadas después de lavar la loza, sobre todo cuando Holanda y yo secábamos los platos porque entonces había discusiones, cucharitas por el suelo, frases que sólo nosotras entendíamos, y en general un ambiente en donde el olor a grasa, los maullidos de José y la oscuridad de la cocina acababan en una violentísima pelea.

Uma terceira irmã, porém, não entra no espaço da cozinha, não é iniciada nas lides domésticas, e como tal não participa da criação do espaço para a fuga que as irmãs promovem: Leticia, que sofre de paralisia parcial e que acabará por converter-se em personagem central deste conto. É que a paralisia de Leticia, contrariando justamente a noção de movimento inerente à fuga desejada pelas irmãs, acabará por sintetizar o destino de fracasso desse ensejo, pelo sobrepujamento das condicionantes de coerção, imagem de uma condição humana vivida sob o signo da insuficiência e, como tal, do desencanto. Sobre ela, diz-nos a narradora que «daba la impresión de una tabla de planchar parada. Una tabla de planchar con la parte más ancha para arriba, parada contra la pared». Como se vê, Leticia não apenas lhe vê recusado, por constrição física, o movimento, como é comparada a um instrumento doméstico, convertendo-se em símbolo, aos olhos das irmãs, da sua futura condição serviçal, na expectativa da sua dependência doméstica. A rapariga converte-se assim numa espécie de último cordão umbilical que une as irmãs à casa e à sua infantilidade e, como tal, ao futuro a que procuram escapar. A sua leitura da literatura infantil e irrealista de Rocambole, no interior de um quarto nos fundos da casa, desprezada pela irmã narradora, a ingenuidade e singeleza dos seus sonhos, a pureza das suas estátuas e atitudes idealizadas (princesas, vénus, generosidade, renúncia, sacrifício), fazem de Leticia uma figura da regressão obsessiva ao lado infantil da relação com o mundo, àquele domínio onde uma infantilidade exacerbada se converte em correlativo correctivo de uma realidade não satisfatória. Aos olhos das irmãs, Leticia representará assim a resistência da infância, carente como é de perpétuos cuidados adultos, de uma quase absoluta dependência dos outros e, como tal, da impossibilidade radical da individuação desejada pelas adolescentes. É-nos oferecida por Cortázar através de uma poderosa e comovente imagem de rapariga paralítica brincando junto à linha do comboio, num sítio onde se está velozmente de passagem, ironia da condição humana fracturada.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O rio - Julio Cortázar




        E sim, parece que é assim, que te foste embora dizendo não sei o quê, que te ias atirar ao Sena, qualquer coisa desse tipo, uma dessas frases em plena noite, misturadas com o lençol e de boca pastosa, quase sempre na escuridão ou com qualquer coisa de mão ou de pé roçando o corpo daquele que quase nem ouve, porque há já tanto tempo que quase nem te oiço quando dizes essas coisas, coisas que vêm do outro lado dos meus olhos fechados, do sono que me afunda novamente. Então está bem, que importa que tenhas partido, se te afogaste ou se ainda andas pelos cais olhando a água, e além disso não tenho a certeza, pois estás aqui adormecida respirando entrecortadamente, mas então não partiste quando partiste a certa altura na noite antes de eu me perder no sono, porque tinhas partido dizendo alguma coisa, que te ias afogar no Sena, ou seja tiveste medo, arrependeste-te e de súbito estás aqui quase a tocar-me, e moves-te ondulando como se alguma coisa trabalhasse suavemente no teu sono, como se verdadeiramente sonhasses que partiste e que após tudo isto chegaste ao cais e te atiraste à agua. Qualquer coisa assim, novamente, para adormeceres depois com a cara encharcada por um choro estúpido, até às onze da manhã, hora em que trazem o jornal com as notícias dos que de facto se afogaram.

         Dás-me vontade de rir, coitada. As tuas determinações trágicas, essa maneira de andar a bater às portas como uma actriz de tournées de província, pergunto-me se realmente acreditas nas tuas ameaças, nas tuas repugnantes chantagens, nas tuas inesgotáveis cenas patéticas untadas de lágrimas e de adjectivos e de repetições. Merecias alguém mais dotado do que eu que redarguisse, ver-se-ia erguer-se então o casal perfeito, com o deleitoso fedor do homem e da mulher que se destroem enquanto se olham nos olhos para assegurarem o mais precário adiamento, para sobreviverem ainda e voltarem a tentar e perseguirem inesgotavelmente a sua verdade de terreno baldio e de restos raspados do fundo do tacho. Mas, como podes ver, escolho o silêncio, acendo um cigarro e oiço o que dizes, oiço as tuas queixas (que têm razão de ser, mas que posso eu fazer?), ou, o que ainda é melhor, vou-me deixando adormecer, quase embalado pelas tuas previsíveis imprecações, com os olhos semicerrados misturo ainda por um instante as primeiras vagas dos sonhos com os teus gestos de ridícula camisa de dormir à luz do candelabro que nos ofereceram quando nos casámos, e julgo que por fim adormeço e levo comigo, confesso-to quase com amor, a parte mais aproveitável dos teus movimentos e das tuas denúncias, o som explosivo que te deforma os lábios lívidos de cólera. Para enriquecer os meus próprios sonhos onde nunca ninguém se lembra de afogar-se, acredita.


         Mas se é assim pergunto-me o que estás a fazer nesta cama que tinhas decidido abandonar pela outra mais vasta e mais esquiva. É que agora dormes, moves de quando em quando uma perna que vai mudando o desenho do lençol, pareces incomodada com alguma coisa, não demasiado incomodada, é como um cansaço amargo, os teus lábios esboçam um esgar de desprezo, deixam escapar o ar entrecortadamente, recolhem-no a baforadas breves, e julgo que se não estivesse tão exasperado pelas tuas falsas ameaças admitiria que és outra vez bonita, como se o sono te devolvesse um pouco do meu lado em que o desejo é possível e até mesmo a reconciliação ou um novo prazo, qualquer coisa menos turva do que este amanhecer onde principiam a rolar os primeiros carros e os galos abominavelmente desnudam a sua horrenda servidão. Não sei, já nem sequer faz sentido perguntar outra vez se chegaste a partir, se eras tu quem bateu com a porta ao sair no instante exacto em que eu resvalava no esquecimento, e é talvez por isso que prefiro tocar-te, não porque duvide de que estás aqui, provavelmente nem chegaste a sair do quarto, talvez um golpe de vento tenha fechado a porta, sonhei que partiras enquanto tu, julgando-me acordado, me gritavas a tua ameaça aos pés da cama. Não é por isso que te toco, na penumbra verde do amanhecer é quase doce passar uma mão por esse ombro que estremece e me recusa. O lençol cobre-te pela metade, os meus dedos começam a descer pelo cristalino desenho da tua garganta, inclinando-me respiro o teu hálito que cheira a noite e a xarope, não sei como mas os meus braços envolveram-te, oiço um queixume enquanto arqueias a cintura, resistindo, mas os dois conhecemos demasiado bem este jogo para acreditarmos nele, é preciso que me abandones a boca que ofega palavras soltas, de nada serve que o teu corpo amodorrado e vencido lute procurando escapar-se, somos a tal ponto uma mesma coisa nesse enredo de novelo onde a lã branca e a lã negra lutam como aranhas num bocal. No lençol que já quase não te cobre consigo entrever a lufada instantânea que sulca o ar e se perde na sombra e agora estamos nus, o amanhecer envolve-nos e reconcilia-nos numa só matéria trémula, mas obstinas-te em lutar, encolhendo-te, lançando os braços por sobre a minha cabeça, abrindo como num relâmpago as coxas para voltar a fechar as suas tenazes monstruosas que desejam separar-me de mim mesmo. Tenho de dominar-te lentamente (e, como sabes, fi-lo sempre com uma graça cerimonial), vou dobrando os juncos dos teus braços sem magoar-te, cinjo-me ao teu prazer de mãos crispadas, de olhos enormemente abertos, agora o teu ritmo enfim afunda-se como um pano de seda em lentos movimentos ondulantes, de profundas borbulhas subindo até à minha cara, vagamente acaricio o teu cabelo espalhado na almofada, olho surpreendido a minha mão que jorra na penumbra verde, e antes de resvalar a teu lado sei que acabam de tirar-te da água, e que é demasiado tarde, naturalmente, e que jazes sobre as pedras do cais rodeada de sapatos e de vozes, nua e com as costas no chão, com o teu cabelo encharcado e os teus olhos abertos.

Final do Jogo
Cavalo de Ferro, 2014

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

         Escrevo sobre um dorso que arfa como um animal derrubado.
         O dorso vazio de um animal que respira contra o silêncio.


sábado, 15 de novembro de 2014

Poderia ainda descrever estas rosas. Dizer como são brancas e ardem sobre o regaço, rente ao poial, no silêncio dos seus braços. Também nos seus lábios, na flor do seu hálito, a luz é excessiva. Na sua corola trémula, fresca, sossegada.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

         Eu amo-a por ela ser feita de sombra.

         Por as suas pálpebras encherem os meus olhos de um rumor torrencial.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Ao primeiro mergulho o corpo arde.
Ao segundo mergulho o corpo devora
o próprio ar. A experiência do deserto cresce onde a cidade
tem o seu modo próprio de substituir o ar por este incêndio de escaparates, vidros pisados, magia
das máquinas espelhadas numa paisagem de vitrinas vazias, de corredores
que se multiplicam infinitamente pelo espaço onde esta carta se escreve.

Lia é uma forma de dizer a maldade
não conta para esta inútil colecção de pormenores. No fundo, sabes
que existe um império de corpos respirados,
mortos na matéria da subsistência deste teu pobre aparato de ligações em branco, tendões, espumas que teimamos em partilhar.

É onde o verão se insinua.

Recordas acaso esse deserto.
Lia mergulha e a princípio o corpo arde.
Depois o corpo pesa.
A cabeça o colo pesa o corpo pesa.


domingo, 9 de novembro de 2014

Sobre "Necrophilia", de Jaime Rocha


O sensível equilíbrio entre a angustiada aparição do finito e as sombras da substância de tudo o que ainda possibilita um pulsar vivificante raras vezes terá sido tematizado com a densidade e a segurança que Jaime Rocha nos oferece em Necrophilia. Investido do espanto obsessivo da relação amorosa entre Dante Gabriel Rossetti e Elizabeth Siddall, a celebrada «Ofélia» do quadro de Millais (dobra que se institui, por conseguinte, no avesso do magnífico Adoecer de Hélia Correia), Necrophilia confirma a fascinante capacidade de criação de uma mundividência muito particular, que profundamente comove o leitor – de forma não emocionada - numa curiosa identidade que ultrapassa – ou melhor: se constrói com – as estranhas imagens com que o livro nos vai ferindo. Essa dimensão imagética por vezes perturbante, outras tantas deslumbrante, pejada de uma discreta ternura ou arrebatada violência, fecunda um espaço cuja ressonância tendencialmente narrativa é, ainda, com a subtileza da atenção formal que o verso lhe merece, encerrada numa suspensão de timbre dramático que concilia esse aparente contar alguma coisa com a concentração da energia prosódica de cada quadro visivo. Necrophilia poderia contar-nos o que efectivamente se nos parece estar a contar – narratividade sempre finalmente exasperada - e, porém, o aspecto mais desarmante do livro é a pequena frase em que ressoa uma certa angústia perante o que sofre, tudo o que está a morrer, ou apenas o rasto de um respirar que a própria operariedade da escrita vai reconstruindo, para que sobre ainda, pelo menos, a sombra (a assombração?) de um alarme.

As coordenadas deste universo apresentam uma densidade notável e uma certeza consciente dos limites de que se pretende acercar, muito em particular o do enigma maior de todos, aquele da morte, e o de uma certa resistência apaziguada à sua força aniquiladora. Definitivamente, não é de pura aniquilação que Necrophilia trata, pois os seus monstros são subtis e não devoradores. Os seus poemas (ou longo poema de contínuos?) dão-nos antes a lucidez de uma progressiva anulação de tudo quanto ainda respira, a nadificação serena, sem insurreição e, porém, com desgosto. É, pois, em certa medida, um elogio da dignidade humana, ou da sua luta feita consciência dos limites, que encontra o espelho fundamental na desolação e no amor. Assim, povoada de um universo figural relativo ao imaginário pré-rafaelita – donde emergem figuras como o Cavaleiro, o Pedreiro, o Guerreiro, o Homem da Montanha, o Anjo ou o Pássaro – é a íntima relação entre o Homem e a Mulher (íntima e no entanto tão eivada das cumplicidades entre todos os elementos imanentes que conjunta uma autêntica cosmovisão da unidade fundamental, de uma intimidade universal) que centraliza o derrame deste exercício do paroxismo entre a disjunção do morrível e do desejo da permanência. Por isso mesmo Necrophilia (amor da morte, amor na morte) debate-se essencialmente com o ritualizante cuidar/exumar do corpo da Mulher amada (assistindo, com notável originalidade, à sugestão do tema enunciado por Poe, em epígrafe) que parece equilibrar em si – na sua própria elementaridade destrutível – todo o sentido do mundo.


A plenitude da vivência cíclica da suspensão, espelhada numa «temporalidade sem tempo, mítica, arcaica ou arquetípica», tal como sugere o brilhante ensaio introdutório de João Barrento, consagra a este poderoso kommos, assente numa linguagem crua, a intensidade da imagem onírica que nos «assombra». Através de uma tendência descritiva do corte da imagem, da fulguração nua e da evidência sem paliativos, desenha-se um denso isotopismo que, na aparente desconexidade que a sucessão de imagens cria, reverte a favor de uma familiarização inteligível da substância do dito. Ele dá-nos conta, finalmente, de uma possível – desde o sonho do impossível do Homem – redenção, essa aceitação e superação do absoluto maior de todos – o da morte - que encerra a nunca conclusa vocação amante do humano, a um tempo gregária e assassina.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Então ela dizia-me não quero sair desta casa. Como quem dissesse fica, não me deixes morrer.


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

terça-feira, 4 de novembro de 2014

, o instante de dizer-lhe somos jovens, temos tanto para morrer, o deserto da tarde em cada sílaba e entre as mãos ardendo de desejo, na combustão do ciúme, meu amor, tomá-la de assalto luminosamente, na confusão do crime, na complicação da carne, tocá-la e senti-la estremecer contra a noite, nos raides do verão ao portinho, na confusão dum primeiro beijo dado mais tarde, na promessa do linho duma cama de hotel, levantar a corola dos lábios dela até à bica e nela deixar emergir a manhã, sacudi-la num frémito, e entre nós duas ou três palavras, estás bem, abraça-me, morre por favor, 

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

         Eu desejaria fazer a cama no teu corpo.

         Estender-me ao sol que deflagra na substância do teu corpo.

domingo, 2 de novembro de 2014

Em Portugal ou em Espanha, escrever é chorar - segunda parte


Quando começou a traduzir, com vinte anos, José Bento, o mais jovem colaborador da Árvore, tinha já publicado poesia. A tradução era como um exercício de escrita. “Estive em Espanha, onde frequentei cursos de língua e de literatura espanholas na Complutense e em Baeza. A tradução é um modo de ler e, lendo outros autores desse modo atento que a tradução exige, só se um tipo for muito burro é que não aprende. A melhor forma de aprender a escrever é ler coisas boas”. Sobre o modo como as suas traduções influenciariam a sua poesia, afirma: “não me parece que tenha muitas influências”; embora, após uma pausa, corrija: “a gente tem sempre, embora diga que não para nos armarmos em bons. Não há ninguém que não tenha mestres”. Entre os processos de criação e de tradução, que é também um modo muito significativo de criação, há naturais intersecções. José Bento não tem dúvidas: “aprende muito menos o poeta com o tradutor do que o tradutor com o poeta. Alguém que não domine profundamente a sua língua não pode ser um bom tradutor”. Essa é justamente a qualidade que afirma distinguir a excelente tradução da tradução mediana: “O problema maior da tradução nunca foi conhecer a língua de que traduzimos mas sim conhecer a língua para a qual traduzimos”. Eis, porventura, a razão pela qual os poetas são sobretudo traduzidos por outros poetas. José Bento concorda, mas, “apesar disso, temos alguns bons tradutores que não são poetas, como o Paulo Quintela, embora muitas vezes seja acusado precisamente de resvalar para um certo prosaísmo”.

Consente em que há no processo da tradução uma grande dose de intuição, uma dada sensibilidade mais ou menos espontânea para a língua, e certos momentos em que o tradutor se vê confrontado com a necessidade de decidir entre realizar uma aproximação àquilo que poderá interessar ao leitor ou àquilo que poderá interessar ao original. Em ditos momentos, José Bento afirma que “o objectivo é sempre fazer com que a tradução seja um texto significativo na literatura e na língua portuguesas. Entre o espírito e a letra prefiro manter o espírito, creio. Além disso, entre espanhol e português, e apesar de todas as diferenças, há uma notória proximidade que permite justamente conseguir quase sempre um equilíbrio entre ambas as partes, leitor actual e texto original”.

Quando lhe pergunto que tradução ou traduções se seguem prefere um balanço: “chega uma altura em que um tipo já traduziu tanto que aquilo se transforma numa espécie de hábito”. Digo-lhe que tal não é necessariamente negativo. Sorri e responde: “dá prazer mas não leva a nada. A tradução tornou-se já uma espécie de fazer pelo prazer do processo em si”. Um pouco como a poesia, acrescento eu, ao que ele acede: “sim, outra inutilidade”.

Retomamos assim o tema das intersecções entre traduzir e escrever. Leio-lhe dois versos do seu último livro de originais (Quando escreves com uma das mãos prendes / o papel, que a outra vai lavrando, / semeando a palavra e a turbação/ no impulso que excede / a força que as unifica e as separa) e noto que haverá porventura em ditos versos a evidência de uma escrita a duas mãos que apenas a experiência da tradução possibilita. “Por outro lado – afirma -, sinto muitas vezes que o exercício constante da tradução limita a produção de originais. Não é uma questão de cansaço, é uma questão de tornar-se evidente para mim mesmo que há tópicos, temas, coisas já escritas às quais não vou acrescentar nada”. Mas logo abandona o tom de postulação mais especulativa: “No fundo, não sei. Sou muito emotivo, guio-me mais por sentimentos do que por ideias, pelo que sou o pior juiz de mim mesmo”.

Peço-lhe que me indique o poeta que mais lhe interessa e à sua poesia: “o poeta que mais me ensinou foi Antonio Machado, embora não me pareça que na minha poesia se note a sua presença”. Digo-lhe que a presença espanhola na sua poesia se dá onde esta denota uma tendência para um prosaísmo contido por uma forte coesão métrica. Concorda, acrescentando que não gosta de poesia “com berloques, com muitos enfeites, muitas pilinhas”, tipo que afirma existir bastante em Portugal nas últimas três décadas. “Não gosto de poesia difícil, gosto de uma poesia que um leitor habituado a ler entenda”. Questionado sobre a mais recente poesia ibérica, José Bento afirma ter-se desligado um pouco do que publicam os novos. Não obstante, sublinha que “há ainda bons poetas vivos, e se houvesse um apenas já salvaria a nação”. Por outro lado, abundam, é certo, “os poetas que não têm sequer a décima parte da qualidade que cuidam ter”. Essa é, aliás, “uma prova da existência de Deus. O pensarem todos os poetas que são bons, havia alguém que o dizia”.

São “tipos corajosos”, os poetas. Vêem-se mais do que amiúde confrontados com o marasmo editorial. E depois há a imprensa, “que simplesmente não fala dos livros, a juntar ainda a uma certa máfia que controla o elenco daqueles de que se fala e daqueles que é necessário silenciar, segundo poderes e compadrios, deixando às vezes irremediavelmente na sombra um conjunto muito considerável de autores”. Após um silêncio, e a propósito, recorda Larra: “escrever, em Portugal ou em Espanha, é chorar”. E é por isso que os poetas são “tipos cheios de coragem. É necessária muita coragem para viver. Já ando a bater nisto há muitos anos. Publiquei o primeiro livro há já cinquenta”. E foi sempre muito difícil, afirma. “O mal não é de agora. Hoje não é mais difícil publicar. Mas também não é mais fácil e isso é que é preocupante. Passaram-se cinquenta anos e os vícios do sistema continuam iguais”. Como se sobrevive? “É preciso ter muita força. Muita força ou muita estupidez, duas qualidades que frequentemente se acompanham e mutuamente aperfeiçoam”, comenta, rindo.

Talvez por estar ciente das condições do sistema institucional literário, José Bento também entende que a tradução tem por vezes a dimensão de uma aposta: “A tradução vai para além dos poetas canónicos. O tradutor também aposta, como eu apostei em Francisco Brines ou Eloy Sánchez Rosillo, autores praticamente ignorados em Portugal”. Peço-lhe que me explique a aproximação ao primeiro: “A primeira vez que li Brines fiquei fascinado. Estava a dar formação na Lisnave - isto para verem os sítios obscenos por onde eu já andei, cursos técnicos para engenheiros, a pior gente que há –, e nos intervalos do curso punha-me a ler. Um dos livros que levei e li pela primeira vez ali foi Palabras a la Oscuridad. Fiquei fascinado”.

Pouco tempo volvido foi a Madrid, em Novembro de 1976. Tinha encontro marcado com Carlos Bousoño, amigo de anos, e pediu-lhe que o levasse a conhecer Francisco Brines. “Ia a Madrid muitas vezes, estava lá mais ou menos tempo conforme o tempo e o dinheiro de que dispunha. E então encontrámo-nos os três: eu, o Carlos Bousoño e o Francisco Brines. Comecei a dar-me com o Brines. Quando ia a Madrid encontrava-me com ele. Só passado algum tempo publiquei a antologia da sua poesia, já com o apoio de bolsas oferecidas pelo Ministério da Cultura espanhol”.

Sem ditos apoios seria impossível publicar algumas das traduções que fez, tais como a longa antologia da poesia espanhola contemporânea ou aqueloutra dos Siglos de Oro. A primeira merece-lhe uma recordação particular: “chegou inclusive a haver um compromisso meu com o Ministério da Cultura português. Eles comprometeram-se a publicar essa antologia depois de eu os consultar. Acharam bastante interesse naquilo. O David Mourão-Ferreira interessou-se também muito. Entretanto mudou o governo e ele foi corrido e substituído por um meu ‘amigo’ que lixou aquilo tudo”. Depois de uma pausa, prossegue: “Já estão a ver o que é a amizade”. A mencionada recolha viria a ser publicada tempos depois e seria mesmo considerada em Espanha a melhor antologia de poesia espanhola contemporânea.

Entre obras de uma dimensão só por si respeitável, e obras cuja língua requer um trabalho apurado de versão, José Bento não tem dúvidas: “O livro mais difícil foi sem dúvida o Quixote. Aquilo deu trabalho como o diabo”. Lera já a tradução de Aquilino Ribeiro, “uma versão muito livre feita por um grande escritor” com a habilidade de não resolver nenhuma dificuldade de compreensão ou de leitura de algum momento mais ambíguo do texto original: “Ele salta sempre, não enfrenta as dificuldades”. A revisão da tradução, de que ele próprio se encarregaria, ficaria por fazer, pois entre a conclusão do trabalho e a data prevista de publicação foi-lhe detectado um cancro. Após a recuperação da doença, procedeu à revisão, mesmo tendo sido publicado o livro, “cheio de gralhas”, na data prevista. O trabalho de revisão da tradução tomou-lhe “mais de meio ano, de manhã à noite” e dele resulta a edição de bolso da Biblioteca de Editores Independentes em circulação.

Há neste labor a tranquilidade e o aparente descomprometimento de quem se habituou a viver entre línguas, entre literaturas, construindo e explorando os bairros às vezes clandestinos da marginalidade periférica aos grandes centros dos cânones nacionais. José Bento desconfia do mito das literaturas nacionais, cunhadas pelas marcas pitorescas: “Isso hoje, mais do que nunca, tende a esbater-se. A literatura pende para a universalização, sobretudo a partir do século XIX. Todos conhecemos a influência de Flaubert em tantos e tantos romancistas, e Baudelaire domina toda a poesia desde a segunda metade do século XIX, excepto a inglesa”.

É por isso mais estranho ainda o silêncio que insiste em interpor-se entre Portugal e Espanha, mesmo quando lemos como nunca os autores ibero-americanos. “Há um português que afirma que temos de melhorar as relações luso-portuguesas. Conhece-se, trata-se e cuida-se muito mal a língua e a literatura portuguesas em Portugal. Não podemos exportar aquilo que nós próprios não consumimos. Veja que o nosso país, e isso nunca foi tão verdade como hoje, tem estado na mão de meia dúzia de bestas”. É necessário cultivar, como os espanhóis cultivaram, o que em nós é de cunho identitário mais vincado: “A literatura portuguesa conseguiu vingar, no século XIX por exemplo, muito mais significativamente do que a literatura espanhola, precisamente por termos cultivado aquilo que somos. No século XIX, Espanha tem apenas praticamente um grande poeta, Gustavo Adolfo Bécquer, um tipo que morreu com trinta e seis anos”.

As contas equilibram-se à medida que vamos avançando no século XX: “Portugal tem um poeta que eles não têm, um Pessoa. Mas eles têm um conjunto de poetas muito significativos, começando por Miguel de Unamuno e Antonio Machado, os quais, curiosamente, tinham alguma coisa muito especificamente portuguesa. Depois vem a geração de 27, com três ou quatro poetas absolutamente formidáveis, Lorca, Cernuda, Guillén, que, equivalendo em termos geracionais à nossa Presença, lhe é bastante superior”.

Não há entre estes autores qualquer um que José Bento não tenha traduzido. Observo-o enquanto um longo silêncio se insinua entre nós e a conversa, à medida que ele fixa o olhar sobre o Palácio Nacional de Sintra, cuja fachada está coberta por andaimes e tapumes. Alguns minutos depois, enquanto caminhávamos em direcção ao jardim do município, onde faríamos as fotografias seguindo a solicitação do João, contou-nos ainda de um projecto para uma antologia da poesia ibero-americana em dois volumes, da paixão pela música clássica e pela pintura de El Greco, de como disse a Vergílio Ferreira, num jantar, que António Nobre não estava tuberculoso por alturas da composição dos poemas do . Fez-se tarde, mas José Bento ainda assim esperou que fôssemos nós a iniciar o cerimonial da despedida. Com a mesma paciência. Mesmo que a sua mulher, de entre todas a pessoa que mais vezes mencionou, o esperasse provavelmente mais cedo.


Sintra, Julho de 2013
Fotografia de João Varela

sábado, 1 de novembro de 2014

A ecologia literária - texto de António Guerreiro

O Prémio Leya, ao qual podem concorrer obras inéditas de ficção narrativa em língua portuguesa (e cujo vencedor deste ano foi conhecido na semana passada), tem um regulamento que contraria o modo como ele é anunciado e publicamente percebido. Em primeiro lugar, a decisão do júri, “constituído por, pelo menos, sete destacadas personalidades do mundo literário e cultural”, exerce-se sobre um corpus de, no máximo, dez inéditos, seleccionados pela editora entre um total de algumas centenas de concorrentes (um número tão espantoso que é fácil adivinhar que a maior parte nem aguenta uma triagem feita após a leitura da primeira página ou, até, do primeiro parágrafo). Portanto, o júri escolhe num universo restrito resultante da escolha feita por outrem, que é uma parte interessada e não neutra. Em segundo lugar, o prémio, no valor de 100 mil euros, parecendo enorme para a nossa escala, tem uma contrapartida que não é assim tão generosa: o autor abdica de receber direitos de autor até aos 85 mil exemplares vendidos e “cede à Leya o direito exclusivo de explorar comercialmente [o livro] sob todas as formas e em todas as modalidades, em todo o mundo”. É provável — quase seguro — que o montante do prémio seja uma quantia muito superior ao que o autor ganharia se o livro não beneficiasse desse veículo que potencializa as vendas e outros modos — eventuais — de rendimento. É porém completamente falso dizer que o autor ganhou um prémio de 100 mil euros, como se não estivesse a ceder, como forma de pagamento, os direitos de autor. Este prémio funciona assim como um contrato e não como uma doação: a editora simula que está a oferecer 100 mil euros, mas na verdade o que está a fazer é ceder o capital de prestígio — simbólico — que angariou através de determinadas regras do campo literário (antes de mais, mobilizando “destacadas personalidades”, que têm uma função legitimadora) e a organizar o ritual de modo a converter o capital simbólico em capital real. Não há nada de novo a assinalar neste mecanismo (cujo regulamento é público e transparente), a não ser o facto de se tratar de um contrato que precisa de ser dissimulado como prémio para que se criem as condições — certamente não muito fáceis — para que as duas partes ganhem a aposta. A questão mais interessante que aqui se coloca é a seguinte: da “ecologia” literária onde se desenvolvem estas espécies está ausente qualquer concepção de uma literatura autónoma (o que não exclui que livro premiado contradiga o “meio” de onde nasceu o prémio). Um prémio deste tipo situa-nos na condição de uma literatura como género editorial. É essa hoje, também, a condição de uma “literatura mundial”, que já nada tem a ver com o conceito de Weltliteratur que Goethe anunciou nas suas conversas com Eckermann. Esta nova “mundialidade” da literatura não é um estado que caracteriza um conjunto de obras, mas um processo pelo qual o universalismo literário de uma world fiction se conseguiu impor por todo o lado. Esta nova literatura mundial diz-nos muito sobre o editorialismo (noção que abrange muito mais do que as editoras de livros), mas muito pouco sobre a literatura. Há uma fábrica do universal que transformou toda a ecologia literária, de tal modo que se justifica esta pergunta: para onde vai a literatura? E a resposta, fácil de obter quando se entra hoje numa livraria, é esta: vai no sentido do seu desaparecimento, ou pelo menos de uma forma de desaparecimento que nos faz ver claramente quão exíguo é o espaço público que lhe está reservado.