quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Foi um ano hijoputa


Josep María Castellet





Juan Gelman






José Emilio Pacheco






Félix Grande







Ana María Moix







Leopoldo María Panero







Ana María Matute







Ramiro Pinilla







Gabriel García Márquez






Também em português


Eduardo White







Manoel de Barros







Rubem Alves







Vasco Graça Moura









João Ubaldo Ribeiro

domingo, 28 de dezembro de 2014

Graffiti - Julio Cortázar



Tantas coisas que começam e talvez acabem como um jogo, suponho que te divertiu encontrar o desenho ao lado do teu, atribuíste-o a um acaso ou a um capricho e só à segunda vez te apercebeste de que era intencional e então olhaste-o devagar, voltaste mesmo mais tarde para olhá-lo de novo, tomando as precauções de sempre: a rua no seu momento mais solitário, nenhum carro celular nas esquinas próximas, aproximar-se com indiferença e nunca olhar os graffiti de frente mas desde o outro passeio ou em diagonal, fingindo interesse pela vidraça do lado, partindo em seguida.
         O teu próprio jogo começara por aborrecimento, não era na verdade um protesto contra o estado de coisas na cidade, o recolher obrigatório, a proibição ameaçadora de colar cartazes ou de escrever nos muros. Simplesmente divertia-te fazer desenhos com giz colorido (não gostavas do termo graffiti, tão de crítico de arte) e de vez em quando vir vê-los e até com um pouco de sorte assistir à chegada do camião municipal e aos insultos inúteis dos empregados enquanto apagavam os desenhos. Pouco lhes importava que não fossem desenhos políticos, a proibição abarcava qualquer coisa, e se alguma criança se tivesse atrevido a desenhar uma casa ou um cão, também isso teriam apagado entre palavrões e ameaças. Na cidade, já mal se sabia de que lado estava verdadeiramente o medo: talvez por isso te divertisse controlar a tua vida e de quando em vez escolher o lugar e a hora propícios para fazer um desenho.
         Nunca correras perigo porque sabias escolher bem, e no tempo que passava até que chegassem os camiões de limpeza abria-se para ti qualquer coisa como um espaço mais limpo onde quase cabia a esperança. Olhando de longe o teu desenho, podias ver as pessoas que lhe atiravam um olhar ao passar, obviamente ninguém se detinha, mas ninguém deixava de olhar o desenho, por vezes uma rápida composição abstracta a duas cores, um perfil de pássaro ou duas figuras enlaçadas. Apenas uma vez escreveste uma frase, com giz negro: A mim também me dói. Não durou duas horas, e desta vez foi a própria polícia que a fez desaparecer. Depois disso, continuaste a fazer apenas desenhos.
         Quando o outro apareceu ao lado do teu, quase tiveste medo, de repente o perigo tornava-se duplo, alguém se encorajava como tu a divertir-se à beira da prisão ou de qualquer coisa pior, e esse alguém, como se ainda fosse pouco, era uma mulher. Tu mesmo não podias prová-lo, havia qualquer coisa diferente e melhor que as provas mais rotundas: um traço, uma predilecção pelos gizes cálidos, uma aura. Talvez porque andasses sozinho, imaginaste-a por compensação; admiraste-a, tiveste medo por ela, esperaste que fosse a única vez, quase te denunciaste quando ela voltou a desenhar ao lado de outro desenho teu, uma vontade de rir, de permanecer ali, diante dele, como se os polícias fossem cegos ou idiotas.
         Principiou um tempo diferente, mais sigiloso, mais belo e ameaçador ao mesmo tempo. Descuidando o teu emprego, saías não importava em que momento com a esperança de surpreendê-la, escolheste para os teus desenhos essas ruas que podias percorrer num só rápido itinerário; voltaste de madrugada, ao anoitecer, às três da manhã. Foi um tempo de contradição insuportável, a decepção de encontrar um novo desenho dela junto a algum dos teus e a rua vazia, e a de não encontrar nada e a rua ainda mais vazia. Certa noite, viste o seu primeiro desenho sozinho; fizera-o com gizes vermelhos e azuis numa porta de garagem, aproveitando a textura das madeiras carcomidas e as cabeças dos pregos. Era ela mais do que nunca, o traço, as cores, mas sentiste além disso que aquele desenho funcionava como um pedido ou uma interrogação, uma maneira de chamar-te. Voltaste de madrugada, depois de as patrulhas baterem na sua surda drenagem as ruas, e no resto da porta desenhaste uma rápida paisagem com velas e quebra-mares; de não olhá-lo bem, dir-se-ia um jogo de linhas desordenadas, mas ela saberia olhá-lo. Nessa noite, escapaste por pouco a um par de polícias, no teu apartamento bebeste gim após gim e falaste com ela, disseste-lhe tudo o que te vinha à cabeça como outro desenho sonoro, outro porto com velas, imaginaste-a morena e silenciosa, escolheste-lhe lábios e seios, amaste-a um pouco.
         Quase em seguida, ocorreu-te que ela procuraria uma resposta, que voltaria ao seu desenho como tu voltavas agora aos teus, e embora o perigo fosse cada vez maior depois dos atentados no mercado, atreveste-te a aproximar-te da garagem, a rondar a zona, a tomar intermináveis cervejas no café da esquina. Era absurdo, porque ela não se deteria depois de ver o teu desenho, qualquer das muitas mulheres que iam e vinham podiam ser ela. Ao amanhecer do segundo dia, escolheste um paredão cinzento e desenhaste um triângulo branco rodeado de manchas como folhas de carvalho; do mesmo café da esquina, podias ver o paredão (já tinham limpado a porta da garagem e uma patrulha voltava uma e outra vez, raivosa), ao anoitecer afastaste-te um pouco mas escolhendo diferentes pontos de mira, deslocando-te de um sítio a outro, comprando mínimas coisas nas lojas para não chamar demasiado a atenção. Já era noite cerrada quando ouviste a sirene e os projectores te varreram os olhos. Havia um confuso ajuntamento junto ao paredão, correste contra toda a sensatez e só te ajudou a sorte de haver um carro dando a volta à esquina e travando ao ver o carro celular, o seu vulto protegeu-te e viste a luta, um cabelo negro puxado por mãos enluvadas, os pontapés e os gritos, a visão entrecortada de umas calças azuis antes de a atirarem para o carro e a levarem.
         Muito depois (era horrível tremer assim, era horrível pensar que aquilo estava a acontecer por culpa do teu desenho no paredão cinzento), misturaste-te com outras pessoas e conseguiste ver um esboço em azul, os traços daquele laranja que era como o seu nome ou a sua boca, ela ali naquele desenho truncado que os polícias tinham mascarrado antes de levá-la; sobrara o suficiente para compreender que quisera responder ao teu triângulo com outra figura, um círculo ou talvez uma espiral, uma forma plena e bela, qualquer coisa como um sim ou um sempre ou um agora.
         Sabia-lo muito bem, sobrar-te-ia tempo para imaginar os detalhes sobre o que estaria a acontecer no quartel central; na cidade, tudo aquilo se revelava pouco a pouco, as pessoas estavam a par do destino dos prisioneiros, e se às vezes voltavam a ver um ou outro, teriam preferido não tê-los visto e que tal como a maioria se tivessem perdido nesse silêncio que ninguém se atrevia a quebrar. Sabia-lo de sobra, essa noite de gim não te ajudaria mais que a morder as mãos, a pisar os gizes coloridos antes de te perderes na bebedeira e no choro.
         Sim, mas os dias passavam e já não sabias viver de outra maneira. Voltaste a abandonar o teu trabalho para andar às voltas pelas ruas, olhar furtivamente as paredes e as portas onde ela e tu tinham desenhado. Tudo limpo, tudo claro; nada, nem sequer uma flor desenhada pela inocência de um estudante da preparatória que rouba um giz na aula e não resiste ao prazer de usá-lo. Também tu não pudeste resistir, e um mês depois levantaste-te ao amanhecer e voltaste à rua da garagem. Não havia patrulhas, as paredes estavam perfeitamente limpas; um gato olhou-te cauteloso de uma portada quando tiraste os gizes e no mesmo lugar, ali onde ela deixara o seu desenho, encheste as madeiras com um grito verde, uma vermelha labareda de reconhecimento e de amor, envolveste o teu desenho com um ovóide que era também a tua boca e a sua e a esperança. Os passos na esquina lançaram-te num caminho almofadado, ao abrigo de uma pilha de caixas vazias; um bêbedo vacilante aproximou-se cantarolando, quis pontapear o gato e caiu de barriga para baixo junto ao desenho. Afastaste-te lentamente, já seguro, e com o primeiro sol dormiste como não tinhas dormido em muito tempo.
         Nessa mesma manhã, olhaste de longe: não o tinham apagado ainda. Voltaste a meio do dia: quase inconcebivelmente, continuava ali. A agitação nos subúrbios (tinhas escutado os noticiários) afastava as patrulhas urbanas da sua rotina; ao anoitecer, voltaste a vê-lo como tanta gente o vira ao longo do dia. Esperaste até às três da manhã para regressar, a rua estava vazia e negra. De longe, descobriste o outro desenho, só tu poderias tê-lo distinguido, tão pequeno em cima e à esquerda do teu. Aproximaste-te com um misto de sede e horror, viste o ovóide laranja e as manchas violeta de onde parecia saltar uma cara tumefacta, um olho dependurado, uma boca esmagada a bofetadas. Eu sei, eu sei, mas que outra coisa teria podido desenhar-te? Que mensagem teria sentido agora? Tinha de encontrar uma forma de dizer-te adeus e de pedir-te ao mesmo tempo que continuasses. Tinha de deixar-te alguma coisa antes de voltar ao meu refúgio onde já não havia nenhum espelho, apenas um buraco para esconder-me até ao fim na mais completa escuridão, recordando tantas coisas e, às vezes, assim como imaginara a tua vida, imaginando que fazias outros desenhos, que saías à noite para fazer outros desenhos.

Gostamos Tanto da Glenda
Cavalo de Ferro, 2014

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Tango do Regresso - Julio Cortázar



A luz do candeeiro baixo chegava apenas até à cama no fundo do quarto, confusamente via-se uma das mesas-de-cabeceira e o sofá onde ficara abandonado o romance, mas já não estava ali, depois de tantos dias a Flora ter-se-ia decidido a pô-lo sobre a prateleira vazia da biblioteca. Ao segundo whisky, a Matilde ouviu darem as dez horas nalgum campanário longínquo, pensou que nunca antes ouvira aquele sino, contou cada uma das badaladas e olhou o telefone, talvez a Perla, mas não, a Perla a essa hora não, levava sempre a mal ou não estava. Ou a Alcira, ligar à Alcira e dizer-lhe, apenas dizer-lhe que tinha medo, que era uma estupidez, mas se por acaso o Mario não teria saído com o carro, qualquer coisa assim. Não ouviu a porta da entrada a abrir-se, mas ia dar ao mesmo, era absolutamente certo que a porta da entrada estava a abrir-se ou ia abrir-se e não podia fazer nada, não podia sair para o patamar iluminando-o com a luz do quarto e olhar na direcção da sala, não podia tocar a campainha para que a Flora viesse, o insecticida estava ali, a água também ali para os remédios e para a sede, a cama aberta esperando por ela. Foi até à janela e viu a esquina vazia; caso tivesse assomado antes, teria visto talvez o Milo a aproximar-se, atravessar a rua e desaparecer debaixo da varanda, mas teria sido ainda pior, que podia ela gritar ao Milo, como detê-lo se ia entrar na casa, se a Flora lha ia abrir para recebê-lo no seu quarto, a Flora ainda pior que o Milo nesse momento, a Flora que perceberia tudo, que se vingaria do Milo vingando-se nela, derrubando-a na lama, no Germán, atirando-a para o escândalo. Não restava a menor possibilidade de nada, mas também não podia ser ela a gritar a verdade, em plena impossibilidade restava-lhe uma absurda esperança de que o Milo viesse apenas por causa da Flora, que um incrível destino lhe tivesse mostrado a Flora para além de tudo o resto, que essa esquina tivesse sido qualquer esquina para o Milo de regresso a Buenos Aires, do Milo sem saber que aquela era a casa do Germán, sem saber que estava morto lá no México, do Milo sem procurá-la por sobre o corpo da Flora. Cambaleando bêbeda, foi até à cama, arrancou a roupa que se lhe colava à pele, despida deitou-se de lado na cama e procurou o frasco de comprimidos, o último porto rosa e verde ao alcance da mão. Não era fácil fazer os comprimidos sair e a Matilde ia-os acumulando na mesa-de-cabeceira sem olhar para eles, os olhos perdidos na estante onde estava o romance, via-o nitidamente virado para baixo na única prateleira vazia onde a Flora o pusera sem o fechar, via a faca malaia que o Cholo oferecera ao Germán, a bola de cristal sobre a sua base de veludo rubro. Tinha a certeza de que a porta se abrira lá em baixo, que o Milo entrara na casa, no quarto da Flora, que estaria a falar com a Flora ou já teria começado a despi-la, porque para a Flora essa tinha de ser a única razão pela qual o Milo estava ali, ganhar o acesso ao seu quarto para despi-la e despir-se beijando-a, deixa-me, deixa-me tocar-te assim, e a Flora resistindo-lhe e hoje não, Simón, tenho medo, deixa-me, mas o Simón sem pressa, pouco a pouco deitava-a atravessada na cama e beijava-lhe o cabelo, procurava-lhe os seios sob a blusa, apoiava-lhe uma perna sobre as coxas e tirava-lhe os sapatos como se fosse um jogo, falando-lhe ao ouvido e beijando-a cada vez mais perto da boca, amo-te, meu amor, deixa-me despir-te, deixa-me olhar para ti, és tão bonita, desligando o candeeiro para envolvê-la em penumbra e em carícias, a Flora abandonando-se com um primeiro gemido, o medo de que se ouvisse alguma coisa no andar de cima, de que a senhora Matilde ou o Carlitos, mas não, fala baixo, deixa que eu assim agora, a roupa caindo em qualquer lado, as línguas encontrando-se, os gemidos, não me magoes, Simón, por favor não me magoes, é a primeira vez, Simón, eu sei, fica quieta, agora cala-te, não grites, meu amor, não grites.

Gritou mas dentro da boca do Simón, que sabia o momento, que tinha a sua língua entre os dentes e lhe fundia os dedos no cabelo, gritou e depois chorou sob as mãos do Simón, que lhe tapavam a cara acariciando-a, sossegou com um último ai mãe, ai mãe, um queixume que se ia transformando num ofegar e num gemido doce e calado, num querido, querido, a branda estação dos corpos fundidos, do fôlego quente da noite. Muito mais tarde, depois de dois cigarros encostados às almofadas, da toalha entre as coxas cheias de vergonha, as palavras, os projectos que Flora balbuciava como num sonho, a esperança que Simón escutava sorrindo, beijando-a nos seios, andando nela com uma lenta aranha de dedos pelo ventre, deixando-se levar, amodorrar-se, dorme agora um pouco, eu vou à casa de banho e volto, não preciso de luz, sou como um gato de noite, sei onde é, e a Flora mas não, e se te ouvem, Simón, não sejas chata, já te disse que sou como um gato e sei onde está a porta, dorme um momento que eu já venho, isso, quietinha.

Fechou a porta como se acrescentasse outro pouco de silêncio à casa, despido atravessou a cozinha e a sala, virou-se para as escadas e pôs o pé no primeiro degrau, experimentando-o. Boa madeira, boa casa a do Germán Morales. No terceiro degrau viu marcada a faixa de luz sob a porta do quarto; subiu os outros quatro degraus e pôs a mão na maçaneta, abriu a porta com um só empurrão. O golpe contra a cómoda atingiu o Carlitos num sonho intranquilo, endireitou-se na cama e gritou, muitas vezes gritava de noite e a Flora levantava-se para acalmá-lo antes de que a senhora Matilde se inquietasse, envolveu-se com o lençol e acorreu ao quarto do Carlitos, encontrou-o sentado ao pé da cama olhando para o ar, gritando de medo, levantou-o nos braços falando-lhe, dizendo-lhe que não, que ela estava ali, que lhe traria chocolate, que lhe deixaria a luz acesa, ouviu o grito incompreensível e entrou na sala com o Carlitos ao colo, a escada iluminada pela luz de cima, chegou ao pé das escadas e viu-os à porta cambaleando, os corpos despidos transformados numa só massa que desabava lentamente no patamar, que resvalava pelos degraus, que sem desprender-se rolava escadas abaixo numa desarrumação confusa até deter-se imóvel no tapete da sala.

Gostamos Tanto da Glenda
Cavalo de Ferro, 2014

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Recortes de imprensa - Julio Cortázar



A menina tinha ido directamente até à estreita passagem entre dois canteiros que conduzia à porta do pavilhão; virou-se apenas para se assegurar de que eu a seguia, e entrou na barraca. Sei que deveria ter parado e dado meia volta, dizer para mim mesma que aquela menina tivera um pesadelo e estava a voltar para a cama, todas as razões da razão que nesse momento me mostravam o absurdo e o possível risco que corria ao meter-me àquela hora em casa alheia; talvez ainda mo estivesse dizendo quando atravessei a porta encostada e vi a menina que me esperava num vago saguão cheio de trastes e de ferramentas de jardim. Um raio de luz passava por debaixo da porta do fundo, e a menina mostrou-ma com a mão e descobriu quase a correr o resto do saguão, começando a abrir imperceptivelmente a porta. A seu lado, recebendo em plena cara o raio amarelecido da fenda que se ampliava pouco a pouco, senti um cheiro a queimado, ouvi uma espécie de grito abafado que voltava e voltava e parava e voltava; empurrei a porta com a mão e divisei o quarto infecto, os bancos partidos e a mesa com garrafas de cerveja e de vinho, os copos e a toalha de jornais velhos, além a cama e o corpo despido e amordaçado com uma toalha manchada, as mãos e os pés atados às barras de ferro. De costas para mim, sentado num banco, o papá da menina fazia coisas à mamã; tomava o seu tempo, levava lentamente o cigarro à boca, deixava sair pouco a pouco o fumo pelo nariz, enquanto a brasa do cigarro descia até parar no seio da mamã, permanecia o tempo que duravam os gritos sufocados pela toalha envolvendo a boca e a cara, excepto os olhos. Antes de compreender, antes de me ser possível aceitar fazer parte daquilo, houve tempo para que o papá retirasse o cigarro e o levasse novamente à boca, tempo de reavivar a brasa e de saborear o excelente tabaco francês, tempo para que eu visse o corpo queimado do ventre ao pescoço, as manchas roxas ou vermelhas que subiam desde as coxas e do sexo até aos seios onde agora voltava a apoiar a brasa com uma selecta delicadeza, procurando um espaço da pele sem cicatrizes. O grito e a convulsão do corpo na cama, que rangeu sob o espasmo, misturaram-se com coisas e com actos que não escolhi e que jamais conseguirei explicar; entre o homem de costas e eu havia um banco desconjuntado, vi-o erguer-se no ar e cair de quina sobre a cabeça do papá; o seu corpo e o banco rolaram pelo chão quase no mesmo segundo. Tive de lançar-me para trás para não cair também eu, no movimento de erguer o banco e de arremessá-lo pusera todas as minhas forças que no mesmo instante me abandonaram, me deixavam sozinha como um pelele cambaleante; sei que procurei um apoio sem o encontrar, que olhei vagamente para trás e vi a porta fechada, a menina já não estava ali e o homem no chão era uma mancha confusa, um trapo enrugado. O que aconteceu depois podia tê-lo visto num filme ou lido num livro, eu estava ali como se não estivesse, mas estava com uma agilidade e uma intencionalidade tais que, num brevíssimo espaço de tempo, se é que aquilo aconteceu dentro do tempo, me fizeram encontrar uma faca em cima da mesa, cortar as cordas que prendiam a mulher, arrancar-lhe a toalha da cara e vê-la levantar-se em silêncio, agora perfeitamente em silêncio como se tal fosse necessário e até imprescindível, olhar o corpo no chão que principiava a contrair-se desde uma inconsciência que não duraria muito, olhar-me sem palavras, ir até junto do corpo e agarrá-lo pelos braços enquanto eu lhe sujeitava as pernas e com um duplo balancear o estendíamos na cama, o atávamos com as mesmas cordas apressadamente concertadas e amarradas, o atávamos e amordaçávamos dentro desse silêncio onde alguma coisa parecia vibrar e estremecer num som ultra-sónico. O que aconteceu depois não sei, vejo a mulher sempre despida, as suas mãos arrancando pedaços de roupa, desabotoando umas calças e baixando-as até encarquilhá-las contra os pés, vejo os seus olhos nos meus, um só par de olhos desdobrados e quatro mãos arrancando e rasgando e despindo, colete e camisa e cuecas, agora que tenho de recordá-lo e que tenho de escrevê-lo, a minha maldita condição e a minha dura memória trazem-me outra coisa indizivelmente vivida mas não vista, uma passagem de um conto de Jack London em que um caçador do norte luta por ganhar uma morte limpa, enquanto a seu lado, convertido numa coisa sanguinolenta que ainda conserva um resto de consciência, o seu companheiro de aventuras uiva e contorce-se torturado pelas mulheres da tribo que fazem dele uma horrorosa prolongação da vida entre espasmos e gritos, matando-o sem matá-lo, requintadamente refinadas em cada nova variante jamais descrita mas real, como nós reais e jamais descritas e fazendo o que devíamos, o que tínhamos de fazer.  É inútil perguntar agora por que razão estava eu envolvida naquilo, qual era o meu direito e a minha parte naquilo que estava a acontecer diante dos meus olhos, que sem dúvida viram, que sem dúvida recordam como a imaginação de London deve ter visto e recordado o que a sua mão não era capaz de escrever. Sei apenas que a menina não estava connosco desde que eu entrara naquele sítio, e que agora a mamã fazia coisas ao papá, mas quem sabe se somente a mamã ou se eram outra vez as rajadas da noite, pedaços de imagens regressando de uma notícia de jornal, as mãos cortadas do seu corpo e postas num frasco com o número 24, através de fontes não oficiais apercebemo-nos de que faleceu subitamente nos começos da tortura, a toalha na boca, os cigarros acesos, e Victoria, de dois anos e seis meses, e Hugo Roberto, de um ano e seis meses, abandonados na porta do edifício. Como poderia eu saber quanto tempo durou, como entender que também eu, como aceitar que também eu realmente do outro lado de mãos cortadas e de fossas comuns, também eu do outro lado das raparigas torturadas e fuziladas nessa mesma noite de Natal; o resto é um virar as costas, atravessar o horto embatendo contra uma cerca e abrindo um joelho, sair para a rua gelada e deserta e chegar à Place de la Chapelle e encontrar quase de imediato um táxi que me trouxe a um copo após outro de vodka e a um sono do qual despertei ao início da tarde, atravessada na cama e vestida dos pés à cabeça, com o joelho a sangrar e essa dor de cabeça talvez providencial que provoca a vodka pura quando passa do gargalo à garganta.

Gostamos Tanto da Glenda
Cavalo de Ferro, 2014