segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O nosso reino era assim - sobre "Final do Jogo" de Julio Cortázar (primeira parte)



Em “Final do jogo”, Julio Cortázar aborda a emergência da adolescência a partir da encenação de um jogo que três irmãs levam a cabo diariamente num troço de caminho-de-ferro. Vendo passar os passageiros do comboio, diante dos quais apresentam estátuas e encenam atitudes, desenha-se no seu horizonte a viagem como percurso de afirmação identitária, tal como enunciada por Guattari, como promessa de uma partida que a maioridade representaria, rasurando a ligação a um espaço familiar de que procuram desprender-se. Nos domínios deste jogo, nos limites ambíguos de um reino que se inventaram para estender e transgredir aqueloutro da casa familiar, revela-se uma certa topografia a fim de uma superação do sentimento de despertença suscitado por essa ruptura com o familiar que a adolescência constitui, numa demanda de um espaço topofílico no qual fixar a existência individual (transgredindo a ordem gregária da casa materna). As raparigas procuram definir assim um espaço alheio ao da sua familiaridade, fundando um reino – onde carnavalescamente se fizessem rainhas contra a ordem dos dias comuns - e onde o lúdico se sobrepusesse à realidade da asfixia de um futuro comezinho, marcado por uma condição instrumental própria do seu papel doméstico, com existências arredadas do deslumbramento da viagem em que os outros estavam já lançados, e abafadas pelo seu papel de mulheres futuras, como aquelas que perpetuarão a casa e a sua ordem claustrofóbica: «Nuestro reino era así: una gran curva de las vías acababa su comba justo frente a los fondos de nuestra casa. Cuando nos agachábamos a tocar las vías nos subía a la cara el fuego de las piedras, y al pararnos contra el viento del río era un calor mojado pegándose a las mejillas y las orejas. Nos gustaba flexionar las piernas y bajar, subir, bajar otra vez, entrando en una y otra zona de calor, estudiándonos las caras para apreciar la transpiración, con lo cual al rato éramos una sopa. Y siempre calladas, mirando al fondo de las vías, o el río al otro lado, el pedacito de río color café con leche». O olhar infantil descobre no horizonte vislumbrado a partir deste reino de transição, a partir de um contacto iminentemente sensitivo com um espaço próprio de uma hierofania, a promessa “al otro lado”, aquele vislumbre do “pedacito de río color café conleche”. É certo que a predicação do rio denuncia desde logo a sobredeterminação das marcas de familiaridade na relação perceptiva com o mundo (o café com leite lá de casa), o que, conforme veremos, inibe o processo de separação da casa familiar, mas interessa-me agora destacar aquela que é, conforme se tem observado, uma imagem reiterativa na obra de Cortázar, a da pretensão de uma ponte que permitisse transitar de uma realidade que é território da insuficiência existencial a uma zona de infinitas possibilidades de ser. Aquela porta branca a que a irmã-narradora se refere, que abre assim para o reino destas raparigas, onde elas justamente desempenharão os diversos papéis ditados pelo jogo, dá bem conta daquilo que é uma esquizofrenia inerente ao eu e que exige ao sujeito mergulhado numa cisão radical de si a si uma esquizoescrita libertadora, que aqui é sugerida pela dimensão performativa do jogo, que adquire um sentido correctivo, sotoriológico.
Este jogo encena, de algum modo, a dimensão delirante do espaço restrito, convencional, regulado, da casa familiar, emergindo directamente como monstro do seio do sono da razão, da vigilância dos legisladores adultos: «esperando que mamá y tía Ruth empezaran su siesta para escaparnos por la puerta blanca», é preciso que os adultos adormeçam, é na sua letargia que a infância se descobre um horizonte de libertação para a maioridade sem eles. Naturalmente, a transgressão da relação amorosa que abriga aquele núcleo familiar recobrir-se-á de um pendor sádico próprio do ambíguo processo de separação, do desgaste que o pulsional origina nas estruturas do superego, e por isso “la satisfacción más profunda era imaginarme que mamá o tía Ruth se enteraran un día del juego”. Este sadismo constitutivo do afecto dirigido às figuras do universo familiar encontrará ainda, como seria de esperar, uma vítima para uma transferência que tem evidentes traços autopunitivos: o gato, que interessa a Cortázar pela sua dualidade domesticidade/independência, surge aqui como avatar do paradoxo pertença/transgressão em que as raparigas se acham afundadas: «El recurso heroico, si los consejos y las largas recordaciones familiares empezaban a saturarnos, era volcar agua hirviendo en el lomo del gato.» Este exercício da crueldade tem valor de autonegação e é premonitório do destino destas raparigas: aquilo que elas violentam é a sua própria circunscrição a uma existência adormecida num entrelugar, num reino que é, como disse, extensão e transgressão da própria casa. Através dele, elas procuram gerar a confusão e a discussão no seio da cozinha (espaço protótipo da domesticidade), a fim de fugirem para o seu reino, escapando às repreensões maternas que, sugestivamente, as ameaçam com «irem viver para a rua». É bom de ver que aquilo que nesse reino acharão justamente não as libertará, assim como o gato é e não é lá de casa.
         É preciso insistir no detalhe de ser na cozinha que se inicia a fuga para o reino do jogo. Nele, no seio do desempenho das atividades domésticas que, como raparigas, lhes estavam prometidas, as duas irmãs, Holanda e a narradora, descobrem o horizonte do seu futuro caseiro, serviçal, obediente a uma lógica convencional que tão contrária é à da euforia estética e imaginária do seu jogo. E, por isso, estabelecem uma relação conflitual com a mãe e a tia, separam-se do núcleo da casa criando uma facção que as enfrenta, gerando uma pretensa alteridade que lhes permite criar as condições da fuga, tornando-se especialistas em gerar brigas em plena cozinha: «Mamá y tía Ruth estaban siempre cansadas después de lavar la loza, sobre todo cuando Holanda y yo secábamos los platos porque entonces había discusiones, cucharitas por el suelo, frases que sólo nosotras entendíamos, y en general un ambiente en donde el olor a grasa, los maullidos de José y la oscuridad de la cocina acababan en una violentísima pelea.

Uma terceira irmã, porém, não entra no espaço da cozinha, não é iniciada nas lides domésticas, e como tal não participa da criação do espaço para a fuga que as irmãs promovem: Leticia, que sofre de paralisia parcial e que acabará por converter-se em personagem central deste conto. É que a paralisia de Leticia, contrariando justamente a noção de movimento inerente à fuga desejada pelas irmãs, acabará por sintetizar o destino de fracasso desse ensejo, pelo sobrepujamento das condicionantes de coerção, imagem de uma condição humana vivida sob o signo da insuficiência e, como tal, do desencanto. Sobre ela, diz-nos a narradora que «daba la impresión de una tabla de planchar parada. Una tabla de planchar con la parte más ancha para arriba, parada contra la pared». Como se vê, Leticia não apenas lhe vê recusado, por constrição física, o movimento, como é comparada a um instrumento doméstico, convertendo-se em símbolo, aos olhos das irmãs, da sua futura condição serviçal, na expectativa da sua dependência doméstica. A rapariga converte-se assim numa espécie de último cordão umbilical que une as irmãs à casa e à sua infantilidade e, como tal, ao futuro a que procuram escapar. A sua leitura da literatura infantil e irrealista de Rocambole, no interior de um quarto nos fundos da casa, desprezada pela irmã narradora, a ingenuidade e singeleza dos seus sonhos, a pureza das suas estátuas e atitudes idealizadas (princesas, vénus, generosidade, renúncia, sacrifício), fazem de Leticia uma figura da regressão obsessiva ao lado infantil da relação com o mundo, àquele domínio onde uma infantilidade exacerbada se converte em correlativo correctivo de uma realidade não satisfatória. Aos olhos das irmãs, Leticia representará assim a resistência da infância, carente como é de perpétuos cuidados adultos, de uma quase absoluta dependência dos outros e, como tal, da impossibilidade radical da individuação desejada pelas adolescentes. É-nos oferecida por Cortázar através de uma poderosa e comovente imagem de rapariga paralítica brincando junto à linha do comboio, num sítio onde se está velozmente de passagem, ironia da condição humana fracturada.

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