O sensível equilíbrio entre a angustiada aparição do finito
e as sombras da substância de tudo o que ainda possibilita um pulsar
vivificante raras vezes terá sido tematizado com a densidade e a segurança que
Jaime Rocha nos oferece em Necrophilia.
Investido do espanto obsessivo da relação amorosa entre Dante Gabriel Rossetti
e Elizabeth Siddall, a celebrada «Ofélia» do quadro de Millais (dobra que se
institui, por conseguinte, no avesso do magnífico Adoecer de Hélia Correia), Necrophilia
confirma a fascinante capacidade de criação de uma mundividência muito
particular, que profundamente comove o leitor – de forma não emocionada - numa
curiosa identidade que ultrapassa – ou melhor: se constrói com – as estranhas
imagens com que o livro nos vai ferindo. Essa dimensão imagética por vezes
perturbante, outras tantas deslumbrante, pejada de uma discreta ternura ou
arrebatada violência, fecunda um espaço cuja ressonância tendencialmente
narrativa é, ainda, com a subtileza da atenção formal que o verso lhe merece, encerrada
numa suspensão de timbre dramático que concilia esse aparente contar alguma
coisa com a concentração da energia prosódica de cada quadro visivo. Necrophilia poderia contar-nos o que
efectivamente se nos parece estar a contar – narratividade sempre finalmente
exasperada - e, porém, o aspecto mais desarmante do livro é a pequena frase em
que ressoa uma certa angústia perante o que sofre, tudo o que está a morrer, ou
apenas o rasto de um respirar que a própria operariedade da escrita vai reconstruindo,
para que sobre ainda, pelo menos, a sombra (a assombração?) de um alarme.
As coordenadas deste universo apresentam uma densidade
notável e uma certeza consciente dos limites de que se pretende acercar, muito
em particular o do enigma maior de todos, aquele da morte, e o de uma certa
resistência apaziguada à sua força aniquiladora. Definitivamente, não é de pura
aniquilação que Necrophilia trata,
pois os seus monstros são subtis e não devoradores. Os seus poemas (ou longo poema
de contínuos?) dão-nos antes a lucidez de uma progressiva anulação de tudo
quanto ainda respira, a nadificação serena, sem insurreição e, porém, com
desgosto. É, pois, em certa medida, um elogio da dignidade humana, ou da sua
luta feita consciência dos limites, que encontra o espelho fundamental na
desolação e no amor. Assim, povoada de um universo figural relativo ao
imaginário pré-rafaelita – donde emergem figuras como o Cavaleiro, o Pedreiro,
o Guerreiro, o Homem da Montanha, o Anjo ou o Pássaro – é a íntima relação
entre o Homem e a Mulher (íntima e no entanto tão eivada das cumplicidades
entre todos os elementos imanentes que conjunta uma autêntica cosmovisão da
unidade fundamental, de uma intimidade universal) que centraliza o derrame deste
exercício do paroxismo entre a disjunção do morrível e do desejo da permanência.
Por isso mesmo Necrophilia (amor da
morte, amor na morte) debate-se essencialmente com o ritualizante cuidar/exumar
do corpo da Mulher amada (assistindo, com notável originalidade, à sugestão do tema
enunciado por Poe, em epígrafe) que parece equilibrar em si – na sua própria
elementaridade destrutível – todo o sentido do mundo.
A plenitude da vivência cíclica da suspensão, espelhada numa
«temporalidade sem tempo, mítica, arcaica ou arquetípica», tal como sugere o
brilhante ensaio introdutório de João Barrento, consagra a este poderoso kommos, assente numa linguagem crua, a
intensidade da imagem onírica que nos «assombra». Através de uma tendência
descritiva do corte da imagem, da fulguração nua e da evidência sem paliativos,
desenha-se um denso isotopismo que, na aparente desconexidade que a sucessão de
imagens cria, reverte a favor de uma familiarização inteligível da substância
do dito. Ele dá-nos conta, finalmente, de uma possível – desde o sonho do
impossível do Homem – redenção, essa aceitação e superação do absoluto maior de
todos – o da morte - que encerra a nunca conclusa vocação amante do humano, a
um tempo gregária e assassina.
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