quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A mudez dos animais doentes



Nos minutos iniciais da película, desconcertado por uma sucessão aparentemente desconexa de imagens que prefiguram uma experiência da inconsciência resgatada à fome (o termo é de Bergman) que motivou o filme a partir da própria experiência subjectiva e interrogante do realizador, o intérprete de Persona (1966) depressa entenderá o epíteto de filme obscuro, enigmático e difícil que tem acompanhado a obra-prima do realizador sueco. O desenvolvimento elíptico e não linear do filme é assim anunciado por esta acelerada série de representações de carácter obsessivo, nas quais se detecta, não obstante, um sentido resgatado à prevalência da imagem da decomposição (da imagem em decomposição) do próprio aparelho cinematográfico em toda a sua dimensão física e simbólica. Após os créditos iniciais, o espectador iniciará uma viagem a esta interioridade manifesta que faz dessa decomposição e dessa representação os veículos interpretativos de toda a narrativa, emergindo desse modo a elipse e o fragmento como modalidade formal com um efeito semântico detalhadamente explorado ao longo de todo o filme. 


Partindo assim de uma dimensão metalinguística na abordagem do objecto cinematográfico, Persona convoca uma série de elementos brechtianos, fecundando uma visão que encontra na representação cinematográfica representada como tal uma ambiguidade perceptiva especularmente (e não espectacularmente…) trilhada.Depressa notamos, conforme observava a propósito do filme Susan Sontag, que para a compreensão de Persona deve o intérprete (não espectador) ultrapassar o simples olhar psicologista ou erotizante que poderia presidir à leitura desta narrativa. A questão é aqui, fundamentalmente, de foro existencial e radica no questionamento da identidade individual que Bergman reconhecia ter bebido em Sartre, partindo de uma experiência genuinamente pós-apocalíptica como a que a segunda metade do século XX nos ofereceu, com todos os seus deuses (metafísicos, políticos) definitivamente mortos. 


A experiência de antecipação de uma nadificação que a morte implica hoje como limite absoluto, como fim desprovido de finalidade, é representada em Persona a partir de uma redução da questão à sua primeira baliza: a de uma identidade impossível dado o condicionamento a que o eu sempre está sujeito por uma contingência convencional que o limita e o situa numa determinada fracção do real que o não abarca totalmente. Bergman conheceu a evidência de uma contemporaneidade que, fazendo a apologia do conhecimento (científico, claro está), engendrou justamente o discurso que o impossibilitaria para sempre: reduzido a umarepresentação do real, a uma só perspectiva, de acordo com Nietzsche (outro filósofo de que Bergman era assíduo leitor), o mundo vê-se desprovido de uma verdade totalizadora e abandona o sujeito à sua solidão radical, a uma identidade vertida em absurdo porque ausente da verdade e porque ausente de si mesma.


É a própria cultura, que engendra o discurso despersonalizador de uma mentalidade urbanizante (até mesmo aquém da urbanidade) que dissipa o eu do indivíduo e inventa nele o funcionário, o instrumento social útil ao serviço de um sistema de transacção capitalista. Esta lógica que faz com que o desemprego nos faça afirmar que não servimos para nada, que somos uns inúteis merecedores da reprovação geral e do controlo da nossa assiduidade na procura do trabalho que nos empregue no verdadeiro sentido do verbo é assim recusada por Elizabeth (Liv Ullmann), a protagonista de Persona, a qual se coloca a possibilidade de uma resistência à civilização pela adopção deliberada de uma absoluta mudez que a absorveu durante a encenação de Electra. De modo a procurar fazer coincidir o eu consigo mesmo, de modo a encontrar-se na sua individualidade idêntica apenas a si mesma, Elizabeth ousa prescindir de todas as exigências externas que a despersonalizam, que inventam nela a máscara (a persona) social (a profissão de actriz, cuja simbologia fica assim evidente, o seu público, o seu marido e o seu filho), toda uma série de personagens rotineiras em que ela se não achava completamente em si. O emudecimento assinala assim uma ruptura com a convenção social que desindividua o eu e é caucionado pela clausura de Elizabeth numa casa de campo para a qual é remetida a fim de uma recuperação, na qual permanece sob os cuidados de uma enfermeira (Bibi Anderson) cujo nome é Alma.


Mas em Elizabeth tudo está enquinado por um acesso racional ao mundo, até mesmo onde ela recusa a construção racional (a cultura) num mundo natural. Recusar desempenhar os papéis sociais que lhe cabem, recusar fazer parte do sistema, é nela ainda um modo deliberativo de estar nesse mundo civilizado, é ainda um modo de agir de acordo com as regras que o sistema tece. A sua guetização mental a partir de uma atitude tão racional como a de qualquer outro animal doente por essa mesma razão, de acordo com Unamuno, inviabiliza nela o acesso à identidade que desejava, ao que nela seria o puramente dado como qualquer realidade elementar ou natural aquém da cultura, aquém dos constructos racionais da nossa civilidade. Ela participa assim, como diria Wittgenstein, da nossa forma de vida e por isso sorri, vê televisão, lê, escreve. A realidade diabólica, conforme é qualificada no filme, impede que pela mudez a protagonista se afaste da linguagem, fazendo-a desempenhar nela apenas um outro papel, como a propósito do filme observou Jung.


É essa absoluta consciência que a faz pronunciar a única palavra que o seu cativeiro deliberado lhe permite, a palavra da absoluta racionalidade, da projecção, da abstracção plena – “nada” – e que a faz desejar confundir-se com o lado mais animal que habita a mesma casa: Alma (Anima) é aquela que aparentemente não deseja, e que como tal não teme, aquela que desprovida de futuro desconhece o nada e vive apenas na orgia do presente e do contingente. Depressa o mundo simbólico de Bergman atingirá o seu clímax significativo: Persona não é senão a história da razão formando o cerco ao lado saudável, animal, da nossa pessoa, formando a personalidade, contagiando a nossa identidade de uma dimensão permanentemente desejante e angustiada. Dissecada pela razão, Alma fala continuamente para Elizabeth, espécie de muda psicanalista que a lança numa neurose de dúvidas, receios, devaneios, vontades. Este vampirismo psíquico próprio da obra de Strindberg, na qual se baseia Bergman para o enredo deste filme, culminará com uma apropriação tal da alma pela razão que aquela se desvirtua a ponto de se diluir.


Bergman relata assim o cercear absoluto da essência humana pelo discurso contemporâneo legitimador do conhecimento, da análise, da racionalidade a que a nossa cultura dá primazia por sobre a humanidade aquém dela (bárbara, bestial, pouco cívica). A imagem dos rostos de Alma e de Elizabeth fundindo-se, formando um só rosto, dando conta dessa apropriação da primeira por parte da segunda, esconde no entanto uma rebelião final que é ainda a seu modo uma advertência de Bergman ao nosso tempo: há uma animalidade como um grito abafado em cada um dos indivíduos civilizados, enxutos, bem-parecidos, bons pais de família, boas donas de casa, profissionais de sucesso, desempregados incriminados, cidadãos honestos dos nossos dias. Julgarmos que a domesticámos pelo discurso da sua racionalização, pelo discurso do nosso pavor da ignorância, terá talvez sido justamente um modo de adulterá-la a tal ponto que já a não possamos identificar quando ela emergir dentro da nossa quotidiana dormência. Tanta anestesia de razão terá talvez desfigurado o monstro e ele nasça do seu excesso e tenha o nosso rosto e seja a nossa alma. E talvez então, por tanto termos querido conhecê-lo, amordaçá-lo, dissecá-lo, simplesmente o não possamos reconhecer, não reconheçamos o nosso próprio rosto desfigurado no espelho.

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