quinta-feira, 28 de agosto de 2014

No desenho como em casa


André Carrilho é um ilustrador português cujo trabalho tem sido amplamente premiado e internacionalmente reconhecido. Em Inércia, publicado pela Abysmo, reúne um diário gráfico que regista e reflecte sobre as suas viagens pelo mundo entre Janeiro de 2012 e Agosto de 2013. Os textos que acompanham as composições gráficas servem de pretexto a uma atenta reflexão sobre a temática da viagem como manifestação identitária cuja ambiguidade gostaria de destacar.


A formulação verbal do projecto que percorre as páginas deste livro ajuda-nos a compreender essa dimensão identitária que se associa ao acto de viajar, tal concebido por Guattari e Ronick. Afirma o autor que «os desenhos deste livro foram feitos presencialmente no local que retratam, à mão, com canetas, tintas acrílicas, grafite solúvel e aguarelas». Verificamos que o autor faz menção de uma espécie de concepção primária da relação do sujeito com o desenho e com o espaço, sublinhando o despojamento instrumental e técnico que subjaz a uma relação presencial com o espaço, com recurso a materiais simples e a uma predominante fisicalidade (a mão) no relacionamento com o local retratado, com um grau de re-tratamento que, sendo-o, não dispensa uma fidelidade mimética à realidade, numa reprodução à escala.


Aquilo que se esconde por detrás destas palavras é uma curiosa encenação do próprio figurino do viajante como tal, desde a dimensão diarística desta obra ao recurso ao pequeno caderno em que, à maneira de anotação da participação do sujeito nos espaços retratados, faz as anotações dessa mesma participação, transparecendo assim uma encenação do próprio objecto-livro como o resultado de uma experiência no seu sentido absoluto, de uma vivência particular de um determinado conjunto de contingências espácio-temporais por um sujeito que olha.


A viagem e o viajante atravessam assim como espectro toda a significação que nos é proposta, a começar pelo título que refere a inércia dos corpos com vocação para o movimento, para «continuar em movimento» mesmo apesar das limitações físicas da realidade contingente que os obriga a parar. Esses corpos inscrevem assim um halo de vontade, um lançar-se no espaço que permanece como apetite maior de alguém que exerce com o olhar um apropriamento da realidade que percorre.


É sobre esse apetite que o autor reflecte, e cabe-nos perguntar pelo que subjaz a essa permanência da vontade de um outro espaço que desperta nele a necessidade de recusar o estado estacionário que incide inclusive sobre a sua relação com o próprio desenho, circulando, como afirma, sempre a «contra-ciclo» do mesmo, recusando esperar que o mesmo atinja o limite da conclusividade que um autor pode controlar, a publicação, perscrutando sempre novos espaços.


Aquilo que inicialmente Carrilho parece não compreender é justamente o modo como as suas palavras e a sua atitude reflectem a disposição fundamental da existência humana para projectar um olhar tendencialmente turístico por sobre o mundo, a pretexto da relação do indivíduo com o que lhe é alheio. Quando recusa submeter-se aos conceitos de turista e de viajante, pois, segundo o que afirma, «Ambos têm algo que eu não tenho: disponibilidade para o que encontram no caminho», o autor observa o facto de a atitude que a ambos subjaz ser a própria de quem está, como estamos em viagem, predisposto para o olhar. O que o autor não problematiza directamente é o facto de essa predisposição para o olhar não implicar, e pelo contrário recusar, a disponibilidade para o espaço a que o turista e o viajante chegam. E tal ocorre pela mesma razão que justifica que afirmemos que a própria recusa de se confundir com um turista ou um viajante fazem vingar em Carrilho aquilo que nele é precisamente um olhar turístico.


Reparemos que não apenas aquele que viaja como viajante e como turista assume um papel no relacionamento com o espaço visitado que justamente implica à partida uma não pertença a esse mesmo espaço que cada gesto caucionará. É o discurso da não pertença que se esconde por detrás da objectiva do turista que percorre os locais de interesse turístico, mas é também de não pertença o discurso que o viajante que recusa esses mesmos locais e opta pela imersão, assim o julga, na cultura visitada, exibe por detrás da sua auto-limitação à exibição do turístico que nele há. A pretensão de uma familiaridade com o espaço que resulta numa criação de rotinas levada a cabo no mesmo, «como se sempre lá tivesse estado», não é senão um modo de afirmar a não pertença do sujeito ao mesmo. Saber desta aporia não é um mero exercício de problematização, mas um modo de reconhecermos a necessidade intrínseca ao sujeito humano de preservar um olhar turístico que é nele um modo de manifestar a sua carência de identidade.


Quando Lacan estudava a fundação especular do eu, ou quando Ricoeur afirmava a formação da ipseidade pela alteridade, não estávamos na presença senão da teoria que subjaz àquilo que este livro nos ajuda a evidenciar. O sujeito é carente de preservar na diferença para com o espaço alheio para que garanta uma espécie de permanente regressus ad uterum (penso em Eliade) que lhe garante um sentido de pertença dado a priori. Esse desejo grita por todos os lados no mundo urbano da alimentação transgénica gourmet, das feiras periódicas, das auto-estradas pejadas de gente regressando a casa em vésperas de fim-de-semana prolongado. Dispersos como somos por tantos não-lugares que Augé identificou na nossa era urbana, como poderíamos migrar de facto entre lugares?


A cidade oferece-nos o culto da individualidade aparente, da aleatoridade e da prescindibilidade das relações humanas (agora somos sociais) e fomos domesticados nesse regime de incomunicabilidade (o qual, é certo, é no limite radical ao Homem) e até o centro é para nós comercial. Não é de espantar portanto que a literatura de viagens atinja o actual surto de interesse do grande público, pois funciona como uma sala de espelhos da nossa solidão em viagem. Nessa literatura, quer o saibam ou não os seus autores, não encontramos senão a radicalização das figuras de alteridade avaliadas, mesmo que não judicativamente, pelo nosso olhar turístico. Ela manifesta a contínua criação de um sistema de tabus, tal como observava Rivière, que demarca a diferença constitutiva, identitária, entre o viajante e o espaço da viagem.


Assim, e como as palavras de Carrilho demonstram, permanecemos mergulhados nos entrelugares que a nossa modernidade nos legou, não ultrapassando na relação com o espaço, seja ele qual for fora do útero materno, o sentimento de unhomeliness a que se referia Bhabha, um desconforto latente na relação com o onde não é o meu lar. Essa latência arvora amiúde nos processos de espectacularização ou de exotificação do espaço estrangeiro tão próprios do olhar turístico, do modo de acesso ao que é próprio de uma alteridade de cuja preservação dito olhar depende. O olhar turístico transforma-se assim em ferramenta de cristalização do pitoresco, a qual visa neutralizar, como bem observou Pratt, através do engodo auto-proposto da superioridade cultural, uma ameaça. A alteridade é assim coisa de se estranhar, relegada para guetos mentais que a preservam como tal, na dimensão ideológica da perspectivação do turista que preserva o exotismo do turístico como espectáculo do qual, para que o seja como tal, ele necessariamente não participa.


Esta ausência de uma vontade concreta de participação no espaço visitado, de uma vontade de migração autêntica, induz uma prática da distância. A evidência de que o espaço novo não constitui uma oportunidade concreta de mudança, de que esta não é a minha casa, cauciona a condição turística de haver uma aonde regressar, sendo pois a viagem um mecanismo de passageiro contacto com “the Exotic Other” (Bruner), através do qual o turista encontra, afinal, aquilo que já possuía, a sua absoluta pertença apenas e só a uma origem que faz de qualquer viagem, e em última análise de qualquer relação com o outro, uma mera actividade recreativa, cujo carácter efémero resulta também do próprio comportamento dos “nativos” desse espaço. Com efeito, conforme observaram antropólogos como Smith ou Mansperger, os agentes do espaço turístico agem como tal, reforçando (pela simpatia, pelo bem receber, pelo saber falar a língua do outro, por exemplo) a identidade local e recusando assim integrar o viajante.


Se a comunicação implica uma memória partilhada, de acordo com um Lotman, o passado transforma-se em presença fantasmática (em saudade), impossibilitando a absorção do eu pelo outro. A persistência do olhar turístico, da memória da origem, gera assim uma disfunção relacional com o novo. Compreendemos agora por que razão Carrilho afirma que precisa de afastar-se de casa sempre que pretende prosseguir o seu trabalho gráfico, porque em casa sente-se «mais lento, mais ancorado». A libertação desse espaço, assim tão deliberada, para poder conquistar a «claridade e leveza» que possibilitam o desenho, não é senão um modo de preservá-lo como angústia, como prisão identitária, tornando-o incapaz de se libertar da sua nidificação.


Aparentemente, só o processo artístico permite anular, mesmo que momentaneamente, a fugacidade inerente à viagem, o seu carácter aprazado. Carrilho permanece dias a fio no mesmo local, observando, mergulhando numa relação rotineira com o espaço, ignorando os guias turísticos, e tudo isto é, já o vimos, apenas um modo de os não ignorar, de perpetuar o olhar do estrangeiro em visita. E porém «Desenhar tem o poder de abrandar tudo, de me tornar mais imerso num canto particular da realidade. Não penso em mais nada a não ser no que estou a ver. Aliás não penso, olho. E é o desenho que encontra por mim». A imersão técnica do trabalho artístico reduz o eu a uma entidade que exalta as formas perceptivas da realidade, na sua elementaridade geométrica e/ou tonal. Essa imersão promove assim uma espécie de relação com uma realidade em instantâneo que suspende por instantes o mundo e as suas relações. Nesses instantes, André Carrilho entra no desenho como quem entra em casa, como quem chega a uma casa que não está em nenhum e está em todo o espaço.

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