A
reedição do primeiro romance de Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo (1970), pela Dom Quixote, confirma o
lastro transgressor de uma obra que, iniciada nos anos 60 do século XX, se
funda no território de um erotismo assumidamente feminista. A resistência à
primazia da figura masculina, apresentada como protagonista do contexto
cultural vigente, é aqui postulada a partir de uma representação da mesma como
agente de perpetuação de uma ordem doméstica que inferioriza a figura feminina,
amputada por um regime de silêncio obsidiante.
Estando o livro divido em duas
partes, a sua tensão narrativa faz-se no percurso de uma relação
tendencialmente unívoca com o espaço e com o mundo, partindo de uma existência
solitária da protagonista para uma relação de aproximação ao outro em que a
mulher é decisora. Esta metamorfose dá conta de uma transição de uma rigidez
doméstica, marcada pela agressividade e pela suspeita disseminada pela
existência rotineira, para o desejo do outro, como potencial veículo de
transformação da relação da mulher com o espaço que habita, deixando de estar
encerrada num cosmos acentuadamente masculino e estabelecendo uma relação
criativa, concebendo uma apropriação do mundo de que é ela agora o principal
agente.
Ainda assim, pouco a pouco, a reivindicação
de uma dimensão agencial por parte desta mulher gera nela o apetite do
movimento e da ligação ao outro, e as mãos, ambas as mãos, a conduzem agora
sobre o corpo, sobre o corpo de outrem perante o qual ela se faz activa: “E as
minhas mãos sobre o lençol caminham à procura do teu corpo, percorrem-no,
brandas, primeiro brandas e à medida que melhor te distingo no escuro do
quarto, imóvel, aguardando-as, mergulho em ti a minha boca: as mãos a
tropeçarem no desejo”. Instalada na relação desiderativa com a realidade,
ocupando o espaço da varanda (esse entrelugar a um tempo dentro e fora da casa, longe e perto da comunidade), a mulher
vai-se convertendo em protagonista da relação com o outro, violando os limites
da sua reclusão doméstica, saindo à rua, tocando nas pessoas.
Dita erotização redunda numa escrita sensualista, fazendo
do lugar do desejo o lugar da escrita, conforme Barthes, aqui feito feminino. O
corpo da linguagem, através da exaltação descritivista dos sentidos, na rasura
dos limites lógicos entre a realidade e o imaginário, recusa os princípios
racionais e convencionais que assinalam um mundo de domínio discursivo
masculino. Recusando-o, a escrita erotizada transforma-se num modo de resistir
ao mencionado mundo, suspendendo a relação lógica com a realidade e fazendo do
discurso avesso, do discurso feminino, associado à deslocação semântica, à
elipse narrativa e à prática de uma técnica de sugestão poderosamente erótica,
o modo de enunciação predominante. Recordando Duras ou Lispector, é esta uma
escrita interiorizante, auto-referencial, que recusa a dimensão instrumental da
palavra e privilegia o prazer da relação com a matéria em si mesma, modo de
recusar o referente e a instrumentalização que a convenção masculina preconiza.
A erosão da escrita e da acção, o pendor descritivo que atravessa estas
páginas, faz com que nelas se instale a noite, na acepção de Blanchot, o espaço
em que o ser duvida de si mesmo.
As vozes femininas, os fantasmas que os homens tendem a
silenciar, apoderam-se do discurso. Estoutra espécie de silêncio e esta anti-convencionalidade
discursiva fazem da aridez da escrita um espaço que se impõe contra o domínio
masculino. A acção de calar-se, de recusar-se a falar com as palavras dos
outros, de firmar bem ambas as mãos sobre o corpo próprio, é uma acção
revolucionária, uma recusa da realidade intimidante e persecutória em que os silenciosos são silenciados. A auto-reclusão desta protagonista é assim um modo de
recusa do poder associado ao uso masculino da palavra, ao falogocentrismo de que falava Hélène Cixous. A desarticulação do mesmo,
através de uma sobredeterminação do discurso feminino e de uma recusa do
próprio discurso é aqui apresentada por Maria Teresa Horta num romance que
continua a ser, por velhas e novas razões, revolucionário.
Assim, aquela figura interdita pelos
véus do quotidiano, cingida ao espaço da cozinha e/ou da cama, na dissimulação
da interioridade pelo excesso de superficialidade (na apresentação da casa aos
seus visitantes, na beleza física, na domesticidade cumprida em ordenação),
sofre uma transformação. Ela, que fora desprovida de nome, como se ausente de
si mesma, e questionando-se sobre a sua identidade ao espelho da consciência,
descobre-se na inércia de uma vida vegetativa – “ela sente-se
como se dormisse já: uma total e completa lassidão”
-, de uma vida em que o próprio corpo escapa ao seu controlo, a possui: “os
braços e as pernas flexíveis, o corpo lento, os olhos sem expressão presos na
água verde, reflexo do verde-ácido da piscina”. Esta é a inércia de uma morta,
imobilizada e isolada (“Nada mais lhe interessa para além da barreira ostensiva
do isolamento que constrói, que diariamente constrói contra eles”), desprovida
de desejo (e, como tal, de movimento completante) na relação com os outros.
É onde a erotização do corpo feminino atinge o seu
expoente máximo, deixando de ser a matéria amorfa do comprazimento alheio e
sendo agora o instrumento de uma procura individualizante e dominadora,
intimista e voluptuosa, que resulta directamente do processo de luto associado
à perda do amante, primeiro pela sugestão de uma traição e depois pela morte
física. A ausência de um sentido, de uma finalidade existencial associada à
perda do outro - “As coisas acontecem sem finalidade: sente-as
de um modo irremediável” – atribui-lhe agora a responsabilidade por sobre a sua
própria vida e o desejo torna-se obsessivo através de uma existência erotizada.
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