domingo, 31 de agosto de 2014

Com ambas as mãos sobre o corpo


A reedição do primeiro romance de Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo (1970), pela Dom Quixote, confirma o lastro transgressor de uma obra que, iniciada nos anos 60 do século XX, se funda no território de um erotismo assumidamente feminista. A resistência à primazia da figura masculina, apresentada como protagonista do contexto cultural vigente, é aqui postulada a partir de uma representação da mesma como agente de perpetuação de uma ordem doméstica que inferioriza a figura feminina, amputada por um regime de silêncio obsidiante.


Estando o livro divido em duas partes, a sua tensão narrativa faz-se no percurso de uma relação tendencialmente unívoca com o espaço e com o mundo, partindo de uma existência solitária da protagonista para uma relação de aproximação ao outro em que a mulher é decisora. Esta metamorfose dá conta de uma transição de uma rigidez doméstica, marcada pela agressividade e pela suspeita disseminada pela existência rotineira, para o desejo do outro, como potencial veículo de transformação da relação da mulher com o espaço que habita, deixando de estar encerrada num cosmos acentuadamente masculino e estabelecendo uma relação criativa, concebendo uma apropriação do mundo de que é ela agora o principal agente.


Ainda assim, pouco a pouco, a reivindicação de uma dimensão agencial por parte desta mulher gera nela o apetite do movimento e da ligação ao outro, e as mãos, ambas as mãos, a conduzem agora sobre o corpo, sobre o corpo de outrem perante o qual ela se faz activa: “E as minhas mãos sobre o lençol caminham à procura do teu corpo, percorrem-no, brandas, primeiro brandas e à medida que melhor te distingo no escuro do quarto, imóvel, aguardando-as, mergulho em ti a minha boca: as mãos a tropeçarem no desejo”. Instalada na relação desiderativa com a realidade, ocupando o espaço da varanda (esse entrelugar a um tempo dentro e fora da casa, longe e perto da comunidade), a mulher vai-se convertendo em protagonista da relação com o outro, violando os limites da sua reclusão doméstica, saindo à rua, tocando nas pessoas.


Dita erotização redunda numa escrita sensualista, fazendo do lugar do desejo o lugar da escrita, conforme Barthes, aqui feito feminino. O corpo da linguagem, através da exaltação descritivista dos sentidos, na rasura dos limites lógicos entre a realidade e o imaginário, recusa os princípios racionais e convencionais que assinalam um mundo de domínio discursivo masculino. Recusando-o, a escrita erotizada transforma-se num modo de resistir ao mencionado mundo, suspendendo a relação lógica com a realidade e fazendo do discurso avesso, do discurso feminino, associado à deslocação semântica, à elipse narrativa e à prática de uma técnica de sugestão poderosamente erótica, o modo de enunciação predominante. Recordando Duras ou Lispector, é esta uma escrita interiorizante, auto-referencial, que recusa a dimensão instrumental da palavra e privilegia o prazer da relação com a matéria em si mesma, modo de recusar o referente e a instrumentalização que a convenção masculina preconiza. A erosão da escrita e da acção, o pendor descritivo que atravessa estas páginas, faz com que nelas se instale a noite, na acepção de Blanchot, o espaço em que o ser duvida de si mesmo.


As vozes femininas, os fantasmas que os homens tendem a silenciar, apoderam-se do discurso. Estoutra espécie de silêncio e esta anti-convencionalidade discursiva fazem da aridez da escrita um espaço que se impõe contra o domínio masculino. A acção de calar-se, de recusar-se a falar com as palavras dos outros, de firmar bem ambas as mãos sobre o corpo próprio, é uma acção revolucionária, uma recusa da realidade intimidante e persecutória em que os silenciosos são silenciados. A auto-reclusão desta protagonista é assim um modo de recusa do poder associado ao uso masculino da palavra, ao falogocentrismo de que falava Hélène Cixous. A desarticulação do mesmo, através de uma sobredeterminação do discurso feminino e de uma recusa do próprio discurso é aqui apresentada por Maria Teresa Horta num romance que continua a ser, por velhas e novas razões, revolucionário.


Assim, aquela figura interdita pelos véus do quotidiano, cingida ao espaço da cozinha e/ou da cama, na dissimulação da interioridade pelo excesso de superficialidade (na apresentação da casa aos seus visitantes, na beleza física, na domesticidade cumprida em ordenação), sofre uma transformação. Ela, que fora desprovida de nome, como se ausente de si mesma, e questionando-se sobre a sua identidade ao espelho da consciência, descobre-se na inércia de uma vida vegetativa – “ela sente-se como se dormisse já: uma total e completa lassidão” -, de uma vida em que o próprio corpo escapa ao seu controlo, a possui: “os braços e as pernas flexíveis, o corpo lento, os olhos sem expressão presos na água verde, reflexo do verde-ácido da piscina”. Esta é a inércia de uma morta, imobilizada e isolada (“Nada mais lhe interessa para além da barreira ostensiva do isolamento que constrói, que diariamente constrói contra eles”), desprovida de desejo (e, como tal, de movimento completante) na relação com os outros.


É onde a erotização do corpo feminino atinge o seu expoente máximo, deixando de ser a matéria amorfa do comprazimento alheio e sendo agora o instrumento de uma procura individualizante e dominadora, intimista e voluptuosa, que resulta directamente do processo de luto associado à perda do amante, primeiro pela sugestão de uma traição e depois pela morte física. A ausência de um sentido, de uma finalidade existencial associada à perda do outro - “As coisas acontecem sem finalidade: sente-as de um modo irremediável” – atribui-lhe agora a responsabilidade por sobre a sua própria vida e o desejo torna-se obsessivo através de uma existência erotizada.

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