terça-feira, 2 de setembro de 2014

Fialho de Almeida - Primeira Parte



Contra uma espécie de mal-du-siécle, através da condenação da torpeza comportamental do homem, a literatura é para Fialho de Almeida um universo de possíveis que declina um real disfórico, em que predominam «a degenerescência das raças pelos excessos do trabalho e abusos de prazer, (…) a consciência da inutilidade de todos os esforços para atingir a perfeição absoluta» gerando «sociedades inquietantes», que têm «uma feição de decadência» (Os Gatos).


Essa disforia associa-se, desde Os Gatos, à cidade, espaço-necrópole, dirigido por um sem sentido finimundista, marcado pelo virar do século de dimensão apocalíptica que anuncia a decadência da raça e da pátria, assente numa retórica da perda, da qual “escorre uma agonia de fin de la fin, uma enregelada miséria de país gasto, de país morto, de país podre!” (Os Gatos). Lisboa «podia evocar alguma dessas necrópoles torvas, onde as festas resumiam a vida, as carnes das mulheres se cobriam de lhamas de ouro em púrpuras radiantes, a música embalava a embriaguez dos soldados e capitães, e do homem nada vivia senão a besta, tripudiando em concupiscências fenomenais» (Os Gatos). Essa ville malade (à maneira de Eugéne Sue), constitui-se como um espaço para a “radical negatividade da obra fialhiana” a que se refere Isabel Pinto Mateus.


Com efeito, a crise, situada no espaço urbano, é o resultado de um sentido de profunda irrealização, que apela em Fialho à subversão ou transcendência pelo literário. Uma atitude do tipo niilista, que configura o trajecto pré-existencial e pré-surreal do autor (O Sineiro de Santa Ágata), um pessimismo cuja forma recorda Schopenhauer, Nietzsche ou Hartmann, tem subjacente uma atitude estetista que relata uma experiência da deserção artística, como resposta ao sentimento de desespero: «O fim de século é também, me parece, um fim de encanto» (Vida Irónica), ao abrigo do signo do Nada, porque «sobreviver-se era o ideal antigo, de quando os homens ainda tinham fé. Agora cada qual de nós levanta os braços, desesperado, a suplicar que alguém o livre de si mesmo».


Os elementos (naturais ou civilizacionais) revelam-se limitadores à concretização do homem, do seu sonho ou da sua transcendência. Perante esta permanente insatisfação com os limites do existir e da estrutura cronotópica (um eu-aqui-agora) irredutível do mundo, o eu projecta um horizonte de esperança angustiada e confusa, que não respeita a um sentido progressista e positivista que Fialho nega em absoluto, mas a uma ética, ou seja a uma prática, que é o da própria arte como transgressora de limitações. Uma utopia não histórica mas poética, que existe, como afirma Barthes, para fazer sentido, para achar um sentido num mundo que o perdera, concretiza-se em Fialho numa vocação crítica, de penalização dos vícios de um tempo decadente, numa esperança que existe apenas, como afirmava Sartre, na sua acção. Esse segredo utópico do estetismo, sem compromisso vitalista, constitui, portanto, uma forma de actualização do perfil revoltoso, apesar da inutilidade de tudo, pois a literatura é ainda, para Fialho, a forma nobre de o Homem existir.


Por isso mesmo Fialho anuncia a dissolução de uma perspectiva positivista em literatura que a condenava ao olhar laboratorial e documental que desconhecia a matéria do submundo ou do supermundo do real, através dum olhar estilizado ou plasticizado, contra o perfil imitativo da mimesis realista, em que a literatura se funda como «sentimento vertiginal de força e plenitude» e «o artista se abandona às coisas que o rodeiam, força-as a quererem d’ele, violenta-as, transforma-as, até que elas lhe reflictam a força, e sejam o breviário da sua perfeição” (Barbear, Pentear).


Através deste estetismo ético se desenrola a revolta contra todas as convenções sócio-culturais e artísticas, resvalando amiúde em agonismo ou absurdo existencial, em solidão ou em princípios de náusea, anunciando de certa forma o sofrimento cósmico de Raul Brandão. Uma série de derivativos – donde a sedução pelos japonesismos - desdobra-se para criar um efeito de perplexidade, de alucinação em que a literatura fialhiana (numa modernidade que prolonga uma tradição da ruptura, nos termos de Octavio Paz) se inscreve para criar o universo paralelo, mecanismo desses paraísos artificiais para que apontava Baudelaire.


Esse mundo ao contrário, tal como o definiria Bakhtine, cunhado pelo exercício do estranho associado ao obsessivo apelo do potencial exótico/excêntrico de um estilo participante de uma noção da opacidade fundamental do texto literário (tal como entendida pelos formalistas), e a que Fialho é sensível, através do recurso a neologismos, plebeísmos, galicismos e tecnicismos médicos e à tematização de novos mundos, em particular o da cidade proletária, forja o culto da artificialidade e da decomposição, o antimimetismo, o abjeccionismo, o novismo, o individualismo, o autotelismo, formas de um carnaval que visa «ressuscitar com vida d’espírito a matéria amorfa e analgésica (…) criar formas, fantasmagorias, sonhos que agitem mundos” (Barbear, Pentear).


Forma de «violência» (A Cidade do Vício), a sua arte pode ser assim lida à luz duma estética da negatividade tal como interpretada por Adorno e Marcuse, como instrumento de superação catártica a que o autor associa o mundo carnavalizado, realidade de sentido subterrâneo e alucinado que animaliza ou fantasmagoriza o ser, fruto de uma subjectivação, da estilização, ou daquilo a que Fialho chama a despolarização do real.


Esse mundo fantasmático é gerado pelo grotesco que repercute uma vontade de intensidade e plenitude que configura uma experiência da tragicidade do existir humano, da sua inconcretização, alienação, loucura. No limiar entre realidade e idealidade em que o eu se posiciona desenha-se um estado alucinatório e o mundo inferior, infernal, emerge à superfície, cunhado pelas formas rembrandtescas ou goyescas, sintomas de um outro nível de realidade, promovido por assombrações, visões ou aparições, formas dos zombies da idealidade.


Assim, a arte de Fialho consiste em ultrapassar o nível da realidade, complexificando-o pela subjectivação alucinatória e não confessionalista, através da qual o mundo ganha a forma dum inferno de prazeres, sem interdições. Esse universo de possíveis, que consubstancia a experiência utópica e que resulta frequentemente da devolução do homem ao lado baixo (animalesco, vegetal) da vida, império do corpo a manifestar-se, associa-se ao grotesco, forma do excesso corporal que atinge em Fialho de Almeida uma outra dimensão, de análise dos carácteres, através do excesso psicológico, que é o cerne dum olhar caricatural.


O hiperbolismo (essa demanda do excesso) configura um discurso da euforia e do prazer mórbido, da elementaridade grotesca habitada pela degradação, pela queda, pela animalidade e pela vizinhança da morte: «por cima, bêbedos de carnagem, fornicando e comendo sobre a morte, cada vez mais, os abutres turbilhonam, numa festa d’animais gozosos da tortura humana…» (Os Gatos), dimensão grotesca pontuada, porém, por interstícios de exposição da face solar de uma transrealidade que nasce no avesso do escuro, sitiada de “mordeduras da luz”, “síncopes de sede”, “moscas de fogo”, “índoles de salamandra”.


Revelando esta dimensão paradoxal, essa ironia do mundo (Schlegel) consiste na apreensão angustiada duma alienação pessoal: «Pesa-nos sobretudo a consciência de que o nosso reino já não seja deste mundo» (Os Gatos). Neste hiato, há um universo labiríntico e fantasmático que pode aparecer, associado a um apelo da noite que inaugura um espaço para a angústia, para a deformidade, para aquela despolarização do real, que faz emergir o universo espectral das sombras que afectam o eu. Porque a noite «é a grande caverna de alquimia poética» (Figuras de Destaque), é nela que o mundo inferior, infernal, emerge à superfície. Abundam os “túmulos”, os “países submarinos”, os “reinos de coral” ou os “galeões submersos”, na desolação de uma paisagem de «espectros nocturnos» (Os Gatos), num cenário negro, espesso, rodeado de neblinas, donde emergem os monstros inconscientes do ser, os recantos nocturnos duma cidade de vultos, de «silhouettes tenebrosas» (Os Gatos).


Esta fantasmagoria gera uma cosmovisão do terror aparicional, através da descida ao inferno interior, como catábase, à inconsciência consciencializada, ao mundo do sonho trazido à superfície. A figuração patética de uma série de almas penadas transforma a existência, à maneira de Unamuno, «numa névoa, onde se movem sombras indistintas…» (À Esquina). A inquietação, associada ao unheimlich freudiano, transforma-se em «calafrio», através da animação do mundo subterrâneo, do baixo actuando como o alto por um processo de analogias, o que justifica a obsessão com o cemitério, mundo dos mortos que tem paralelo com o mundo dos vivos, essa «cidade obscura dos de caixão à terra, dos prometidos das larvas» (Os Gatos), uma cidade percorrida por espectros, horrorista, despertando «uma sensação de pesadelo subterrâneo» que alimenta um «belo horrível» (Os Gatos).

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