terça-feira, 30 de setembro de 2014

         Ainda te lembras, avó, da patrulha das garças boieiras nos campos repisados pelas vacas, de como a chuva caía nas planícies e o cheiro da terra entrava por ti adentro até aos ossos? Ainda te lembras do coração da terra que era de lume mesmo quando chovia a palpitar nos braços dos homens e das mulheres que semeavam os campos, das raparigas como tu que esvaziavam os cestos e faziam tudo de novo sempre outra vez? Lembras-te, avó? Foste tu que mo disseste. Contaste dos trabalhos que passaste só porque lias às escondidas com a lanterna do teu pai por debaixo dos lençóis, quando o silêncio alastrava na casa e era como um cancro de luz, e de como te custava suster os braços porque o corpo ficava dormente do muito trabalho e da muita correria para um quase nada e da muita fome. Lembras-te de como eu ficava alegre de haver em mim um pouco da rapariga que tu eras e que lia apesar disso tudo, dos campos das lavras das gentes, de como eu gostava de saber por ti um pouco de mim?
         Agora eu já não sei, avó, se é belo ou inútil que os campos sejam áridos e débeis como antes, não sei se tenho forças para ser tu apesar disso tudo, dos campos das lavras das gentes, não sei se é belo ou se é triste ser tu sendo eu. Mas ficaram as águas dos rios da cidade grande, que de bom tinha apenas, dizia o pai e eu acreditava e hoje já não acredito, a placa que dizia Évora, e o pai nunca dizia Évora dizia casa e dizia lugar aonde a gente pertence mesmo quando se sente mal, quando há ondas de uma impressão azeda qualquer a crescer dentro da gente. O pai às vezes falava assim, o pai às vezes falava muito e depois permanecia calado devagar e depois dizia coisas assim, em frases grandes e soltas, quando havia muita gente na casa sentada em cadeiras de plástico branco amarelecido pelo sol por sobre o cimento do chão do quintal, e havia muito sol no quintal, e era dia de cantarmos sentados à mesa pejada de paios, painhos, chouriços de sangue, alheiras, farinheiras, queijos em salgadura, tintos e trinaranjos e coca-colas, olha qu’essa bodega tem-te mal, e pão de muita farinha muito gabado por todos porque durava tanto que só escassas vezes se deitava fora e nunca sem antes um beijo, filhinho, porque é triste despedirmo-nos do fruto do cereal do trabalho da terra, e por isso dizias beijemos o pão, filhinho, e eu beijava mas como se fosse uma coisa de se ter vergonha, como se beijasse uma rapariga no meio da feira no Rossio e como se essa rapariga fosse a Joana e eu tivesse os olhos todos da cidade suspensos em mim a medir os avanços e recuos das línguas e das mãos e dos braços e das línguas outra vez, e tudo isto ainda redobradamente difícil porque eu nos bicos dos pés pois um rapaz não pode ser mais baixo do que uma rapariga, pelo menos não no meio da feira no meio de muita muita gente vigilante como as moscas, na cama sim onde somos todos gigantes, era assim que o tio Luís falava, e tu rias à mesa avó, e era assim que eu beijava o pão, como se fosse no meio de muita gente uma rapariga que eu beijava.
         E o pai cantava connosco mas só até certa hora, depois deixava-se ficar a um canto a olhar, a olhar muito para ver tudo ao mesmo tempo, e ficava calado devagar e depois de um longo silêncio dizia frases como esta terra cresce e é dentro dos pulsos e é dentro dos olhos dos meus amigos, e às vezes olhava para mim e eu via-lhe os olhos cobertos por uma folha de água embaciada, e ele olhava para mim e tocava-me, o pai às vezes tocava-me nos ombros ou detinha a mão trémula de vinhaça no meu cabelo e dizia olha, estes são os teus amigos, e amigos era uma palavra que crescia dentro de mim muito devagar, uma palavra que se aninhava que se aranhava dentro de mim tão devagar quanto o calar-se do pai onde ele ou eu depúnhamos às vezes palavras assim. E eu ficava calado devagar, a contar os amigos, um a um, a repetir os seus nomes caladamente para mim, a avó e os tios e as tias e os primos e as primas e as irmãs e o Rendeiro que era da cidade grande e vestia roupa cara e comia e ria e cantava como a gente, e o Pardal que às vezes vinha atrasado porque tinha ido à prisão visitar o filho e que chegava e assobiava uma melopeia alegre e não lhe calhava nada bem o nome pois parecia uma rola, era como se tivesse uma rola dentro da boca assobiante quando vinha de ver o filho, e o Senhor João que ó se o era e que eu gostava de ouvir porque dizia as palavras muito devagar e olhava muito para dentro dos olhos da gente e às vezes chorava a cantar. Havia outra frase dessas que o pai dizia e que não me esquece, uma frase que dizia assim, são tão difíceis de morrer, os amigos, tão difíceis como o teu avô, como o teu tio, como o Rendeiro, como os que se calam, como os que eu calo porque o trabalho e porque a vida e porque a morte.
         Eu agora já não sei esquecer que a morte, e não sei se é a morte dos livros se é de ti ou a do André de madrugada na estrada nacional ou se são todas as mortes juntas. E já não sei se é belo ou se é triste ser tu, já não sei se a tua planície patrulhada pelas garças ainda existe nesta terra mapeada por homens em gabinetes de mapear o país a partir do ponto tal. Mas olha, ficaram para mim as águas dos rios da cidade grande como uma gigantesca planície de distintos ofícios de gente semelhante à gente, gente que lavrava as águas, esvaziava os cestos, descarregava os bois das paciências jogadas com a morte. Ficou a cal nos pulmões. E essa estúpida mania de lamber as paredes para secar as aftas, como tu dizias que fizesse, e eu ainda te sei a fazer a cal em grandes latas em grandes bidões, e dizias e repetias sempre então é assim, estas são pedras de cal, metemo-las lá dentro e juntamos a água e depois esperamos sem respirar esta poeira malina que a água de cal tem, e eu fazia tudo muito devagar para não correr o risco de falhar, para ser tudo como tu dizias que seria, e punha a lata da cal à sombra, debaixo da laranjeira ao lado do poço e ia ver todos os dias a formar-se a pasta, eu fazia tudo como tu dizias para que as tuas palavras não fossem palavras de mentir, avó, para que não se separassem dos outros ruídos verdadeiros que havia inteiros por sobre a terra, os ruídos das andorinhas no quintal e dos corvos nos postes do bairro do Frei Aleixo, dos cantares que o tio Tomané me oferecia em minúsculas gaiolas de grilos acompanhados pela chuva, e do baque seco das pressões de ar com o André no quintal, e ele deixava-me sempre ficar com a que tinha a mira direita e ele dizer-me toma que com esta não falhas era um ruído tão verdadeiro como as tuas palavras que eu perfilhava porque eram da terra como aquelas coisas todas.
         Mas há tanta coisa que eu já não sei fazer como tu dizias, avó. Olha, já não sei ser imprudente. Falar tudo de uma vez para não ficar com a cabeça cheia de fantasmas e a barriga abafada por um nó de muita gente a que não devia guardar rancor, porque a gente um dia está de abalada, filhinho, e depois de abalada só as coisas boas ficam por dar. Eu já não sei, avó, se as coisas boas são o contrário das coisas más. Já não sei ser intransigente na alegria e na paz, porque já não sei o que é ter os políticos sempre emudecidos pelo comando da televisão da tua cozinha e acredito que há no avesso de tudo um avesso e saber estas coisas faz-nos mal e faz-nos bem e faz-nos mal. E eu já não sei ser como a gente, e agora sou só este silêncio todo mesmo que saiba que este silêncio é só silenciamento e não um silêncio silêncio como deve ser um silêncio bom, como era o silêncio da gente. Sou este silêncio que nem sequer é perdão, mas sim um arranjo de nervos de culpa de remorso de um lamento incontinente porque os dias passam, avó, e continuam a ser uma notícia escusada, uma notícia inutilmente prolongada.     
         Não sei se sabes, mas enquanto morrias no país no país no país no país. E hoje anda-se para aqui encalhado e não há um país mas uma europa de mercadorias e mercados de dívidas e saldos e peneiras e de orçamentos de um cansaço de uma vida que afinal não nos deve nada, uma vida em que o próprio amor ocupa apenas a coluna das despesas e em que o tempo é um investimento sem retorno. Não sei se sabes, avó, mas os papéis do futuro estão selados por um funcionário cego e estamos todos à espera em repartições para cujos partidores o mundo é uma sociedade anónima a inserir os dados nos ficheiros apagados da memória porque o passado é assim uma espécie de processo arquivado e o presente está apoiado sobre um corpo que respira a prestações incertas apostando as últimas coroas nesta vida que garantimos juramos ser a nossa porque a gastámos a pronto.
         E hoje as paredes já não sabem a açúcar amarelo, avó, já não sabem ao que sabiam quando estavam pintadas de cal. Hoje as paredes já não sabem a nada. Quando íamos à praça do Giraldo, lembras-te?, no Verão, para ver as bandas, e encontrávamos lá muita gente, amigos e conhecidos que nunca eram só conhecidos mas pessoas pessoas, quando íamos à praça do Giraldo e era Verão e eu ficava a pensar e a entender e admitia que tinhas razão quando dizias que a praça levava aquele nome porque era ali que a gente geralmente se encontrava, quando íamos à praça para ver os concertos que havia no Verão, as paredes das casas e das lojas sabiam às vezes a palavras que eu não entendia mesmo que ficasse a lê-las calado devagar. Hoje as paredes já não dizem nada. E até nos campos o cheiro do pêlo das vacas molhadas pela chuva, o cheiro da lama bicada pelas garças é diferente. Agora tudo está diferente. E eu já não sei se é triste se é belo ser igual à gente que é igual à gente.

         Não sei se sabes, avó, mas à noite, quando leio, penso que é a tua voz que pensa dentro da minha cabeça certas palavras. Palavras como pão, como beijo, como açúcar. Palavras como cal. E quando volto à cidade, quando passo pelo bairro, digo casa e digo lugar aonde a gente pertence mesmo que. Mas tu morreste. E agora as paredes estão cheias de palavras que não dizem nada. E o país o país o país já não me pode fazer mal.

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