sábado, 20 de setembro de 2014

Mas é apenas um corpo - sobre um romance de Vergílio Ferreira (segunda parte)


E, no entanto, o encontro erótico é fugaz. A sua insuficiência resulta da criação de um sistema de tabus, na acepção de Rivière, associados ao universo feminino, que o mitifica e sacraliza, tornando-o objecto de um desejo inalcançável, fazendo deste uma figura de uma ausência elemental, de um perigo alienatório. É onde Alberto se descobre o «absurdo de uma comunicação» (Estrela Polar). Num universo fundamentalmente masculino, o feminino (a possível ligação) transforma-se em alteridade radical, em realidade sempre fugidia. A fugacidade da revelação do excesso sagrado do feminino não resiste à «incrível redução da pessoa a um objecto» (Estrela Polar). É que «o cansaço aconteceu, um indizível desencanto (…) Há um instante na minha memória, em que todo o mistério de Aida se desvanece. Estremece de alvura todo o seu corpo na sombra, mas é apenas um corpo. Instantâneo, limitado, avulso» (Estrela Polar).

Assim, conforme observa Hélder Godinho, «a Presença degrada-se sempre que “desce” à terra». A comunhão perfeita não é mais do que «um mito da nossa pobre solidão» (Estrela Polar). Esse fracasso relaciona-se, em grande medida, com a relação conflitual que se estabelece com o feminino, em particular ao nível da relação sexual/sensual, na qual o perigo de engolimento do eu pelo outro se agudiza, segundo uma concepção da relação amorosa como antropofagia, vocação a um tempo gregária e assassina. A mulher surge como a vagina dentada a que se refere Eliade, o amor está «travado de dentes em todo o corpo» (Estrela Polar). Manifesta-se, assim, o erotismo como espaço do interdito.

Ecoa aqui sem dúvida Bataille, pois a incapacidade de ligação à alteridade impossibilita, por conseguinte, aquilo a que o autor chama «o crescimento do conjunto e a dádiva dos indivíduos». A obsessão individualizante incapacita a realização amorosa, a ligação, configurando pelo contrário a oportunidade para o engolimento, para o fusional prisional e não libertador, demonstrando que «o sentido último do erotismo é a morte» (Bataille). O erotismo, associado assim freudianamente a uma tanatologia, transforma-se por essa via num «acto de violência que fala a voz do domínio, da destruição» (Invocação ao Meu Corpo).

O que poderia ter sido uma e-volução, um percurso para a ek-sistência, transforma-se em in-volução, em in-sistência, submersão do eu em si, na radicalização da alteridade do outro. A emergência do egotismo - «Se eu nunca a amei a ela nem a ninguém, se não amo senão a mim» (Estrela Polar) – agudiza portanto o problema da incomunicabilidade. O aparicional do instante amoroso revela-se pois na sua insuficiência de teor apocalíptico - «Como aceder aos outros? Cai a noite a toda a pressa, é tão duro estar só» (Estrela Polar) – e alucinatório - «Estamos sós connosco mesmos, perdidos na nossa loucura, no termo da nossa busca» (Estrela Polar), recordando que «a comunhão perfeita não existe» (Estrela Polar), que, conforme Pascal, se morre sempre sozinho.

Revela-se por esta via a persistência do romance como género do desencanto (Lukács), abrindo caminho para o crime. Porque o instante da plenitude amorosa é um «ápice infinito de quem parou de respirar (…) uma infinitesimal vibração» (Estrela Polar), o desejo de fixação de dito instante preconiza o crime como potencialidade, a morte (o homicídio) como cristalização da plenitude da vida: «Acaso a morte é a comunhão mais perfeita?» (Estrela Polar). Perante a evidência de que a propriedade sagrante do feminino se dissipa com demasiada celeridade, de que «quem dormia comigo era alguém que eu aborrecera, que se me gastara» (Estrela Polar) Tânatos aloja-se de novo em Eros, a violência impõe-se com o fim de anular a face real do feminino que devém da sua temporalidade eliminatória do absoluto que a suspensão infinitesimal do encontro erótico contivera: «Fito Alda violentamente, para lhe reduzir a presença ao seu limite. Tento materializar-lhe (…) tudo o que nela é significado» (Estrela Polar).

O crime deriva assim do desejo de que «a morte te abra a grandeza da vida, ta ensine» (Estrela Polar), anulando a insuficiência do feminino desejado. Porque o amor é uma «fugidia verdade, estrela polar incerta, verdade instável» (Estrela Polar), a morte é um apelo de fixação do instantâneo de plenitude aparicional: «Que eu morra agora (…) nesta hora lúcida sem passado nem futuro, nítida» (Estrela Polar). Matar a mulher «para a ter enfim a seu lado na comunhão indestrutível» (Estrela Polar) é pois a derradeira decisão existencial de um condenado, a última oportunidade para afirmar a sua própria liberdade decisora, a potencial expiação de um outro crime, do crime de morrer-se e de a vida ser insuficiente na sua impostura quotidiana: «Um crime era pois um acto, uma superação, um triunfo?».

Retomando assim o absurdo da finitude como núcleo problematizante do romance, a condenação à prisão, agudizando definitivamente a solidão existencial do protagonista/narrador, configura o espaço da escrita como derradeiro crime compensatório, pela emergência do projecto memorial/circular contra a linearidade teleológica de um tempo que a narrativa pretende anular, fazendo eco dessa «misteriosa necessidade de tentar atingir o inatingível, o recomeçar sempre como se começasse, o persistir numa luta que jamais se ganhará» (Conta-Corrente III), «Escrever constantemente, recomeçar constantemente é reinventar em nós uma nova Primavera; reinventar a alegria do início (…); recusar obstinadamente a certeza da morte» (Conta-Corrente-IV).

A circularidade do romance, com a predição de um futuro que continuamente reincide na narrativa do romance e a repete infinitamente, concretizando aquele terceiro tempo, transcendente, esférico, de Parrett, traça-se pela ilusão útil da escrita como fuga à pena capital, à pena de morte a que todo o humano está condenado por condição da sua temporalidade linear, que sempre, fatalmente, desagua na morte. A literatura visa assim a permanência de algo que «participe de mim e seja eu para lá da morte e me testifique e recupere, me seja vida depois eu a não ser, me invente imortal na minha absoluta e inexorável finitude» (Estrela Polar).


Aderindo assim ao ser-contra-a-morte de Malraux, valorizando a arte como anti-destino, Estrela Polar tematiza a potencialidade salvífica da escrita como fixação do aparicional: «Ah, escrever um romance que se fixasse nessa iluminação viva de nós, nessa dimensão ofuscante do halo divino de nós» (Estrela Polar). Partilhando daquela fenomenologia do redondo de Bachelard, a circularidade que o final do romance sugere institui o próprio texto como crime derradeiro, compensatório do castigo a que todo o homem está votado apenas por existir. A desejada infinitude encontra no espaço do texto o potencial fragmentário da resistência à estagnação numa ordem linear e acabada: «A obra de arte inacabada (…) Mais do que nunca isso nos fascina. O fragmento ou o inacabado acentua a voz do imaginário, antes de ser a do perfeito silêncio» (Pensar). No que o projecto erótico fracassara poderá a literatura, enfim, vingar. Contra um castigo para cuja justificação não há culpados, escrever será talvez o último dos crimes perfeitos.

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