A ironia, que se traduz na consciência infeliz de Hegel, no sentimento trágico
unamuniano, ou na náusea sartriana, sublinha
o abandono do sujeito ao caos de uma realidade contraditória, uma certa não
coincidência do homem consigo mesmo, conforme afirmava Ricoeur: «Sinto-me desdobrado e a outra
pessoa de mim aterra-me. Há um muro de gelo a separá-las, há uma muralha de
fogo» (Estrela Polar); «A realidade está atrás da realidade e essa é que é a
exacta realidade» (Invocação ao Meu Corpo).
A superação deste hiato constitui a problemática central do
romance vergiliano, na demanda da re-coincidência ipse/idem que possibilitasse, segundo ainda o filósofo francês, a realização da idealidade do
ego, o fugaz e instantâneo fulgor da epifania da sua plenitude. Tal hiato é, em
Estrela Polar, dado pela tematização
da disforia amorosa, recontada a partir da prisão, metáfora das condições
limitantes do humano (solidão, incomunicabilidade, tédio). Nela cumpre o
narrador e protagonista, Alberto, pena por homicídio de Aida, sua mulher.
Alberto surge como um homem desejante da plenitude de um amor ideal,
encontrando apenas hipóstases desse sonho, o nada das suas relações comezinhas,
quotidianas e fugidias, concretizadas em Aida e Alda, incapaz de consumar com
sucesso o projecto erótico-desiderativo, primeira potencialidade redentora do
crime de, como afirmava Schopenhauer, estar o universo em luta para nada, de ser a vida, parafraseando
Aleixandre, entre duas obscuridades um
relâmpago.
O
projecto desiderativo resulta da ruptura com as figuras do passado familiar,
dada pelo relato da morte dos pais, motivo separacional do eu a si mesmo. Dita
ruptura preconiza a urgência da fixação
de um valor num mundo degradado, ponto-de-fuga antropológico base de toda a narrativa, de acordo com Lukács, caucionando a premência da fixação de uma estrela polar. A ruptura com o espaço topofílico, aquele que, segundo Bachelard, mantém uma relação tímica com o sujeito, o espaço
que designamos de familiar, introduz
a necessidade de uma adaptação do sujeito a um novo espaço que no seu horizonte
desempenhe uma função similar, um espaço de
familiaridade.
O familiar identifica-se com o materno, tal como a obsessão
com o fantasmáticoda presença da mãe como memória engolidora confirma: «presença
imóvel e sem face», «minha mãe vagueia com o seu azorrague pelas sombras desta
noite» (Estrela Polar). Poderíamos por isso empregar a teoria freudiana que dá
conta de uma passagem da fase unitiva mãe-filho (oral succionante) para a fase
oral canibalística, em que se produz uma individuação forçada, portadora de
desamparo, angústia e violência, que induz a necessidade do erótico, o desejo das ligações, de refundação de um amor diatrófico, na terminologia de Spitz, ou
de uma relação anacrilítica (penso ainda em Freud), relação de dependência relativa ao objecto
do amor figurado pela experiência da filiação.
«E
violentamente, quando apareço no quarto, estampa-se-me nos nervos uma imagem
agressiva, de escárnio, cortada de ângulos, como se imobilizada no acto de uma
blasfémia: o rosto de minha mãe, desarticulado, perdera a unidade que eu
conhecia» (Estrela Polar). O motivo da morte da mãe introduz uma ruptura com um
passado familiar/materno e uma perda da unidade,
um abandono ao projecto - «a Mãe muda
não me diz o que sou: deixo de ter raízes, flutuo dolorosamente sem existência»
(Barthes). Dito projecto deve traduzir-se, para ser bem sucedido, no encontro
com um núcleo familiar/feminino renovado. O desejo do feminino, fulcro temático
de Estrela Polar, é o desejo de uma
figura de mediação no processo de criação dessa re-fundação familiar, como
figura investida de amor maternal e erótico a um tempo. É então que o
protagonista se descobre desejante de maternalidade e de genitalidade
(Barthes). O desejo de ligação ao feminino desenvolve-se portanto, em
perspectiva iniciática, como um regressus
ad uterum, na leitura de Eliade.
Surge assim a demanda de uma mulher que suturasse a orfandade,
o sentir-se estranho face à anulação do topofílico, à desfamiliaridade (Bhabha).
Para lograr a união do eu a si mesmo (do ideal ao real), o protagonista deseja as ligações de carácter amoroso
que lhe permitam «encontrar um espaço para estabelecer o seu Presente»
(Hélder Godinho). A demanda da dimensão metafísica do eu associa-se, em Estrela Polar, à procura de um tu, a um impulso fusional como condição
de sobrevivência: «Ah, se tu soubesses como é preciso que eu esteja em ti, que
eu não morra, que eu não morra» (Estrela Polar).
«Esta simples ilusão de um elo de perenidade», «o apelo
absoluto da identidade absoluta, a exigência da comunhão verdadeira» (Estrela Polar)
elege o projecto desiderativo como valor que coordena a narrativa, o que sustentaria a premissa de Girard. O
desejo amoroso traduz-se por conseguinte num desejo de comunicabilidade, na
medida em que a existência individual depende de um dialogismo fundador. Nesta
concepção especular de fundação do Eu, que suporta a leitura de um Lacan, que inscreve a alteridade como
condição da ipseidade, para empregarmos os termos de Ricoeur, mapeia-se um percurso de idealização da
relação erótica. A fundação do eu pela sua inserção na história da alteridade
origina um desejo de comunicabilidade como condição ética da revelação
identitária (Lévinas), desejo esse agudizado pelo confronto com alteridades
conflituais e resistentes como são Aida e Alda.
O acto sexual surge então como forma de penetração
espiritual, até à identidade: «As nossas relações nunca se estabelecem com o
“eu “ dos outros, mas com o que está para cá dele (…) Há só uma situação em que
tentamos atingir um “eu”; é quando fazemos amor» (Conta-Corrente III). A violência do
encontro sexual com a mulher resulta dessa procura de uma presença sagrada que
a excede: «Há um além para lá de ti, da pessoa que vejo e está aqui e que é a
pessoa que és» (Estrela Polar), «Sinto apenas o aroma do seu corpo e um desejo violento de o destruir, de
passar além… (…) Não, não são os teus seios frescos e brancos, a alvura das
tuas ancas de graça, a tontura do teu íntimo calor. É para além disso o que
isso diviniza, é o teu deus, a tua chama oculta.» (Estrela Polar).
O encontro
sexual acede, assim, ao «espaço da infinitude» (Estrela Polar). Objecto do
projecto desiderativo do romance, dito encontro possibilitaria a concretização
do instante epifânico da aparição, da sartriana coincidência do en soi com o pour soi, essa «experiência da auto-revelação de nós próprios» (Invocação
ao Meu Corpo), que «traz aos homens a sua dimensão metafísica, a zona essencial
de si próprios onde verdadeiramente são, unindo-os com a Ordem» (Hélder Godinho). A
plenitude da comunhão com a alteridade feminina, fonte da possível redenção do
sujeito desamparado num mundo des-ordenado pela ausência do familiar, resulta
do instante do encontro amoroso que revela o excesso do feminino como abertura
para o que no protagonista é do domínio da sua idealidade, da sua verdade, da
sua plenitude.
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