quarta-feira, 1 de outubro de 2014

        Se a terra não fosse só esta mistura de ervadia rala e rastejante e não fosse só esta boca sangrada para dentro afundada de um peso onde a luz alentéjea branca da cal não penetra nunca, se não estivesse coberta de um musgo seco e granítico e sobre ela não adejassem os corvos dedilhando dissonantes a caixilharia dos ossos e das vértebras e dos nervos que sobejam às vezes na embocadura da terra,
         se a terra não estivesse inteira sobre os cabelos e não houvesse ainda terra depois deles e de tudo, e até dos lábios e até dos pulsos, avó, se embora sendo ela uma barreira nela se abrissem veios de sangue desenhando o mapa subterrâneo das constelações familiares, abrindo sulcos muito pelo meio em pleno centro do mundo quase até tocar o lume que há no centro, e se os teus olhos calados não parassem de palmilhá-la com as pálpebras fechadas e as pupilas acesas pelo medo,
         se não estivesse tudo tão calado, se não estivesse tudo tão escuro, e tu ainda gritasses para dentro dos dedos agora cobertos do sal terroso da terra, avó, se a terra calasse o seu silvo ervaçal e puro e não jorrasse a prumo para dentro da tua garganta e para dentro do teu útero desabado ao peso do chão, se a terra não
         então talvez pudesses, suplicante ainda e rastejante, avançar com as mãos por sobre os seios, e não havia precisão de ser muito, uns metros e já estava, avançar por entre os caminhos rugosos de terra com as mãos à frente e os olhos fechados, apalpando às cegas abrindo caminho entre os ossos até chegares ao sítio onde ele estivesse, e abririas os braços e os teus seios desabrochados de súbito maduros e breves, jovens e breves, os teus seios desnudos cairiam enfim sobre a boca do morto, e dirias meu filho, não te rales meu filho que a mãe já chegou.
         E o Alfredo não seria só este espasmo longínquo silenciado pelos dias, e dir-te-ia perdoa-me ter-te morrido tão novo, e tu dirias cala-te e dirias ninguém te faz mal, filhinho, a mãe já chegou, e os seus ossos de súbito despertos enterrariam as clavículas nos teus cabelos desalinhados e enliçariam tranças misturadas de raízes secas e no coração da terra o coração do Alfredo não pararia nunca, seria uma raiz de subir do centro da terra até ao horizonte sideral e não pararia nunca, e nunca pararia de subir.
         E quando a tia Marta acordasse e estendesse na cama os seus braços molhados e houvesse no lençol transpirado um outro corpo desenhado e o seu sobressalto fosse o mesmo, mas não exactamente o mesmo, o mesmo sobressalto de vergonha e baba e culpa e pese embora mais calmo, mais penetrado de um desejo de se estender sobre o mapa dos vincos do lençol borrado de suor, quando a tia Marta acordasse e gritasse um grito abafado como sempre e desta vez gritado para dentro como se implodisse toda, então talvez chorasse pela primeira vez em muito tempo, e chorasse a manhã toda a casa toda a vida toda de uma vez.
         E tendo chorado tudo, talvez se levantasse e pensasse em ti, e pensasse ainda no Alfredo, e a boca se lhe fendesse num sorriso como uma rosa apaziguada que nascesse directamente dos teus pulsos onde o Alfredo repousasse como num ninho de mansos animais. E talvez então a tia Marta abrisse a cama e tirasse os lençóis e os dobrasse muito à justa devagarinho e os pusesse na máquina e os lavasse e os dourasse no estendal ao fim da rua de onde se avista a tua casa, e os engomasse diante da porta aberta, olhando o campo em volta e respirando fundo, respirando em paz.
         E quando com o vapor quente subisse o cheiro a roupa lavada, a tia Marta teria vontade de cantar, e não cantaria tão baixinho como faz sempre, pela timidez ou pelo respeito ou pelo medo que as palavras do pai não derrubam, mesmo quando o pai diz parece-me uma sereia sentada muito ao longe, mesmo quando diz mais alto porra que aqui ninguém é mouco, mesmo quando diz baixinho seja se baixinho até nem se sai mal. E a sua voz talvez se misturasse com a água quente do vapor nas palmas das suas mãos caladas, poisadas no lençol, talvez se misturasse com as lágrimas, e pensasse no Alfredo e pensasse em ti.
         Se a terra não fosse só esta mistura de pastagem tanta e tão confusamente alagada de excremento e de lixo urbano e de fedor das águas paradas, talvez tu segurasses essa rosa entre os dedos e os teus cabelos pisados de raízes irrompessem para dentro dessa rosa e a nutrissem para sempre. E então a tia Marta talvez levasse as mãos à boca como quem leva uma palavra a enterrar e a dissesse uma última vez, desculpa, desculpem, e pensasse para consigo Alfredo, agora cala-ta, agora já ninguém te faz mal.

         E então subisse de novo as escadas, e fosse como uma rapariga descalça que descesse ao deserto ao rés de ti, e sozinha ao pé da cama poisasse os dedos sobre os olhos, poisasse os dedos sobre o ventre, rasgado e profundo como um clamor da terra, e se despisse toda e resvalasse inteira e nua sobre a cama e os vincos não fossem nunca mais de medo e o suor nunca mais de culpa e fossem só um mapear dos veios que há na terra, trilhando caminhos de amor e de acidez até aos ossos.

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