quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Recortes de imprensa - Julio Cortázar



A menina tinha ido directamente até à estreita passagem entre dois canteiros que conduzia à porta do pavilhão; virou-se apenas para se assegurar de que eu a seguia, e entrou na barraca. Sei que deveria ter parado e dado meia volta, dizer para mim mesma que aquela menina tivera um pesadelo e estava a voltar para a cama, todas as razões da razão que nesse momento me mostravam o absurdo e o possível risco que corria ao meter-me àquela hora em casa alheia; talvez ainda mo estivesse dizendo quando atravessei a porta encostada e vi a menina que me esperava num vago saguão cheio de trastes e de ferramentas de jardim. Um raio de luz passava por debaixo da porta do fundo, e a menina mostrou-ma com a mão e descobriu quase a correr o resto do saguão, começando a abrir imperceptivelmente a porta. A seu lado, recebendo em plena cara o raio amarelecido da fenda que se ampliava pouco a pouco, senti um cheiro a queimado, ouvi uma espécie de grito abafado que voltava e voltava e parava e voltava; empurrei a porta com a mão e divisei o quarto infecto, os bancos partidos e a mesa com garrafas de cerveja e de vinho, os copos e a toalha de jornais velhos, além a cama e o corpo despido e amordaçado com uma toalha manchada, as mãos e os pés atados às barras de ferro. De costas para mim, sentado num banco, o papá da menina fazia coisas à mamã; tomava o seu tempo, levava lentamente o cigarro à boca, deixava sair pouco a pouco o fumo pelo nariz, enquanto a brasa do cigarro descia até parar no seio da mamã, permanecia o tempo que duravam os gritos sufocados pela toalha envolvendo a boca e a cara, excepto os olhos. Antes de compreender, antes de me ser possível aceitar fazer parte daquilo, houve tempo para que o papá retirasse o cigarro e o levasse novamente à boca, tempo de reavivar a brasa e de saborear o excelente tabaco francês, tempo para que eu visse o corpo queimado do ventre ao pescoço, as manchas roxas ou vermelhas que subiam desde as coxas e do sexo até aos seios onde agora voltava a apoiar a brasa com uma selecta delicadeza, procurando um espaço da pele sem cicatrizes. O grito e a convulsão do corpo na cama, que rangeu sob o espasmo, misturaram-se com coisas e com actos que não escolhi e que jamais conseguirei explicar; entre o homem de costas e eu havia um banco desconjuntado, vi-o erguer-se no ar e cair de quina sobre a cabeça do papá; o seu corpo e o banco rolaram pelo chão quase no mesmo segundo. Tive de lançar-me para trás para não cair também eu, no movimento de erguer o banco e de arremessá-lo pusera todas as minhas forças que no mesmo instante me abandonaram, me deixavam sozinha como um pelele cambaleante; sei que procurei um apoio sem o encontrar, que olhei vagamente para trás e vi a porta fechada, a menina já não estava ali e o homem no chão era uma mancha confusa, um trapo enrugado. O que aconteceu depois podia tê-lo visto num filme ou lido num livro, eu estava ali como se não estivesse, mas estava com uma agilidade e uma intencionalidade tais que, num brevíssimo espaço de tempo, se é que aquilo aconteceu dentro do tempo, me fizeram encontrar uma faca em cima da mesa, cortar as cordas que prendiam a mulher, arrancar-lhe a toalha da cara e vê-la levantar-se em silêncio, agora perfeitamente em silêncio como se tal fosse necessário e até imprescindível, olhar o corpo no chão que principiava a contrair-se desde uma inconsciência que não duraria muito, olhar-me sem palavras, ir até junto do corpo e agarrá-lo pelos braços enquanto eu lhe sujeitava as pernas e com um duplo balancear o estendíamos na cama, o atávamos com as mesmas cordas apressadamente concertadas e amarradas, o atávamos e amordaçávamos dentro desse silêncio onde alguma coisa parecia vibrar e estremecer num som ultra-sónico. O que aconteceu depois não sei, vejo a mulher sempre despida, as suas mãos arrancando pedaços de roupa, desabotoando umas calças e baixando-as até encarquilhá-las contra os pés, vejo os seus olhos nos meus, um só par de olhos desdobrados e quatro mãos arrancando e rasgando e despindo, colete e camisa e cuecas, agora que tenho de recordá-lo e que tenho de escrevê-lo, a minha maldita condição e a minha dura memória trazem-me outra coisa indizivelmente vivida mas não vista, uma passagem de um conto de Jack London em que um caçador do norte luta por ganhar uma morte limpa, enquanto a seu lado, convertido numa coisa sanguinolenta que ainda conserva um resto de consciência, o seu companheiro de aventuras uiva e contorce-se torturado pelas mulheres da tribo que fazem dele uma horrorosa prolongação da vida entre espasmos e gritos, matando-o sem matá-lo, requintadamente refinadas em cada nova variante jamais descrita mas real, como nós reais e jamais descritas e fazendo o que devíamos, o que tínhamos de fazer.  É inútil perguntar agora por que razão estava eu envolvida naquilo, qual era o meu direito e a minha parte naquilo que estava a acontecer diante dos meus olhos, que sem dúvida viram, que sem dúvida recordam como a imaginação de London deve ter visto e recordado o que a sua mão não era capaz de escrever. Sei apenas que a menina não estava connosco desde que eu entrara naquele sítio, e que agora a mamã fazia coisas ao papá, mas quem sabe se somente a mamã ou se eram outra vez as rajadas da noite, pedaços de imagens regressando de uma notícia de jornal, as mãos cortadas do seu corpo e postas num frasco com o número 24, através de fontes não oficiais apercebemo-nos de que faleceu subitamente nos começos da tortura, a toalha na boca, os cigarros acesos, e Victoria, de dois anos e seis meses, e Hugo Roberto, de um ano e seis meses, abandonados na porta do edifício. Como poderia eu saber quanto tempo durou, como entender que também eu, como aceitar que também eu realmente do outro lado de mãos cortadas e de fossas comuns, também eu do outro lado das raparigas torturadas e fuziladas nessa mesma noite de Natal; o resto é um virar as costas, atravessar o horto embatendo contra uma cerca e abrindo um joelho, sair para a rua gelada e deserta e chegar à Place de la Chapelle e encontrar quase de imediato um táxi que me trouxe a um copo após outro de vodka e a um sono do qual despertei ao início da tarde, atravessada na cama e vestida dos pés à cabeça, com o joelho a sangrar e essa dor de cabeça talvez providencial que provoca a vodka pura quando passa do gargalo à garganta.

Gostamos Tanto da Glenda
Cavalo de Ferro, 2014

Sem comentários:

Enviar um comentário