A luz do candeeiro baixo chegava apenas
até à cama no fundo do quarto, confusamente via-se uma das mesas-de-cabeceira e
o sofá onde ficara abandonado o romance, mas já não estava ali, depois de
tantos dias a Flora ter-se-ia decidido a pô-lo sobre a prateleira vazia da
biblioteca. Ao segundo whisky, a Matilde ouviu darem as dez horas nalgum
campanário longínquo, pensou que nunca antes ouvira aquele sino, contou cada uma
das badaladas e olhou o telefone, talvez a Perla, mas não, a Perla a essa hora
não, levava sempre a mal ou não estava. Ou a Alcira, ligar à Alcira e
dizer-lhe, apenas dizer-lhe que tinha medo, que era uma estupidez, mas se por
acaso o Mario não teria saído com o carro, qualquer coisa assim. Não ouviu a porta
da entrada a abrir-se, mas ia dar ao mesmo, era absolutamente certo que a porta
da entrada estava a abrir-se ou ia abrir-se e não podia fazer nada, não podia
sair para o patamar iluminando-o com a luz do quarto e olhar na direcção da
sala, não podia tocar a campainha para que a Flora viesse, o insecticida estava
ali, a água também ali para os remédios e para a sede, a cama aberta esperando
por ela. Foi até à janela e viu a esquina vazia; caso tivesse assomado antes,
teria visto talvez o Milo a aproximar-se, atravessar a rua e desaparecer debaixo
da varanda, mas teria sido ainda pior, que podia ela gritar ao Milo, como
detê-lo se ia entrar na casa, se a Flora lha ia abrir para recebê-lo no seu
quarto, a Flora ainda pior que o Milo nesse momento, a Flora que perceberia
tudo, que se vingaria do Milo vingando-se nela, derrubando-a na lama, no
Germán, atirando-a para o escândalo. Não restava a menor possibilidade de nada,
mas também não podia ser ela a gritar a verdade, em plena impossibilidade
restava-lhe uma absurda esperança de que o Milo viesse apenas por causa da
Flora, que um incrível destino lhe tivesse mostrado a Flora para além de tudo o
resto, que essa esquina tivesse sido qualquer esquina para o Milo de regresso a
Buenos Aires, do Milo sem saber que aquela era a casa do Germán, sem saber que
estava morto lá no México, do Milo sem procurá-la por sobre o corpo da Flora.
Cambaleando bêbeda, foi até à cama, arrancou a roupa que se lhe colava à pele,
despida deitou-se de lado na cama e procurou o frasco de comprimidos, o último porto
rosa e verde ao alcance da mão. Não era fácil fazer os comprimidos sair e a Matilde
ia-os acumulando na mesa-de-cabeceira sem olhar para eles, os olhos perdidos na
estante onde estava o romance, via-o nitidamente virado para baixo na única
prateleira vazia onde a Flora o pusera sem o fechar, via a faca malaia que o
Cholo oferecera ao Germán, a bola de cristal sobre a sua base de veludo rubro. Tinha
a certeza de que a porta se abrira lá em baixo, que o Milo entrara na casa, no
quarto da Flora, que estaria a falar com a Flora ou já teria começado a
despi-la, porque para a Flora essa tinha de ser a única razão pela qual o Milo
estava ali, ganhar o acesso ao seu quarto para despi-la e despir-se beijando-a,
deixa-me, deixa-me tocar-te assim, e a Flora resistindo-lhe e hoje não, Simón,
tenho medo, deixa-me, mas o Simón sem pressa, pouco a pouco deitava-a
atravessada na cama e beijava-lhe o cabelo, procurava-lhe os seios sob a blusa,
apoiava-lhe uma perna sobre as coxas e tirava-lhe os sapatos como se fosse um
jogo, falando-lhe ao ouvido e beijando-a cada vez mais perto da boca, amo-te,
meu amor, deixa-me despir-te, deixa-me olhar para ti, és tão bonita, desligando
o candeeiro para envolvê-la em penumbra e em carícias, a Flora abandonando-se
com um primeiro gemido, o medo de que se ouvisse alguma coisa no andar de cima,
de que a senhora Matilde ou o Carlitos, mas não, fala baixo, deixa que eu assim
agora, a roupa caindo em qualquer lado, as línguas encontrando-se, os gemidos,
não me magoes, Simón, por favor não me magoes, é a primeira vez, Simón, eu sei,
fica quieta, agora cala-te, não grites, meu amor, não grites.
Gritou
mas dentro da boca do Simón, que sabia o momento, que tinha a sua língua entre
os dentes e lhe fundia os dedos no cabelo, gritou e depois chorou sob as mãos
do Simón, que lhe tapavam a cara acariciando-a, sossegou com um último ai mãe,
ai mãe, um queixume que se ia transformando num ofegar e num gemido doce e
calado, num querido, querido, a branda estação dos corpos fundidos, do fôlego
quente da noite. Muito mais tarde, depois de dois cigarros encostados às
almofadas, da toalha entre as coxas cheias de vergonha, as palavras, os
projectos que Flora balbuciava como num sonho, a esperança que Simón escutava
sorrindo, beijando-a nos seios, andando nela com uma lenta aranha de dedos pelo
ventre, deixando-se levar, amodorrar-se, dorme agora um pouco, eu vou à casa de
banho e volto, não preciso de luz, sou como um gato de noite, sei onde é, e a
Flora mas não, e se te ouvem, Simón, não sejas chata, já te disse que sou como
um gato e sei onde está a porta, dorme um momento que eu já venho, isso,
quietinha.
Fechou a porta como se
acrescentasse outro pouco de silêncio à casa, despido atravessou a cozinha e a
sala, virou-se para as escadas e pôs o pé no primeiro degrau, experimentando-o.
Boa madeira, boa casa a do Germán Morales. No terceiro degrau viu marcada a faixa
de luz sob a porta do quarto; subiu os outros quatro degraus e pôs a mão na
maçaneta, abriu a porta com um só empurrão. O golpe contra a cómoda atingiu o Carlitos
num sonho intranquilo, endireitou-se na cama e gritou, muitas vezes gritava de
noite e a Flora levantava-se para acalmá-lo antes de que a senhora Matilde se
inquietasse, envolveu-se com o lençol e acorreu ao quarto do Carlitos,
encontrou-o sentado ao pé da cama olhando para o ar, gritando de medo,
levantou-o nos braços falando-lhe, dizendo-lhe que não, que ela estava ali, que
lhe traria chocolate, que lhe deixaria a luz acesa, ouviu o grito
incompreensível e entrou na sala com o Carlitos ao colo, a escada iluminada
pela luz de cima, chegou ao pé das escadas e viu-os à porta cambaleando, os
corpos despidos transformados numa só massa que desabava lentamente no patamar,
que resvalava pelos degraus, que sem desprender-se rolava escadas abaixo numa desarrumação
confusa até deter-se imóvel no tapete da sala.
Gostamos Tanto da Glenda
Cavalo de Ferro, 2014
Sem comentários:
Enviar um comentário