terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Tango do Regresso - Julio Cortázar



A luz do candeeiro baixo chegava apenas até à cama no fundo do quarto, confusamente via-se uma das mesas-de-cabeceira e o sofá onde ficara abandonado o romance, mas já não estava ali, depois de tantos dias a Flora ter-se-ia decidido a pô-lo sobre a prateleira vazia da biblioteca. Ao segundo whisky, a Matilde ouviu darem as dez horas nalgum campanário longínquo, pensou que nunca antes ouvira aquele sino, contou cada uma das badaladas e olhou o telefone, talvez a Perla, mas não, a Perla a essa hora não, levava sempre a mal ou não estava. Ou a Alcira, ligar à Alcira e dizer-lhe, apenas dizer-lhe que tinha medo, que era uma estupidez, mas se por acaso o Mario não teria saído com o carro, qualquer coisa assim. Não ouviu a porta da entrada a abrir-se, mas ia dar ao mesmo, era absolutamente certo que a porta da entrada estava a abrir-se ou ia abrir-se e não podia fazer nada, não podia sair para o patamar iluminando-o com a luz do quarto e olhar na direcção da sala, não podia tocar a campainha para que a Flora viesse, o insecticida estava ali, a água também ali para os remédios e para a sede, a cama aberta esperando por ela. Foi até à janela e viu a esquina vazia; caso tivesse assomado antes, teria visto talvez o Milo a aproximar-se, atravessar a rua e desaparecer debaixo da varanda, mas teria sido ainda pior, que podia ela gritar ao Milo, como detê-lo se ia entrar na casa, se a Flora lha ia abrir para recebê-lo no seu quarto, a Flora ainda pior que o Milo nesse momento, a Flora que perceberia tudo, que se vingaria do Milo vingando-se nela, derrubando-a na lama, no Germán, atirando-a para o escândalo. Não restava a menor possibilidade de nada, mas também não podia ser ela a gritar a verdade, em plena impossibilidade restava-lhe uma absurda esperança de que o Milo viesse apenas por causa da Flora, que um incrível destino lhe tivesse mostrado a Flora para além de tudo o resto, que essa esquina tivesse sido qualquer esquina para o Milo de regresso a Buenos Aires, do Milo sem saber que aquela era a casa do Germán, sem saber que estava morto lá no México, do Milo sem procurá-la por sobre o corpo da Flora. Cambaleando bêbeda, foi até à cama, arrancou a roupa que se lhe colava à pele, despida deitou-se de lado na cama e procurou o frasco de comprimidos, o último porto rosa e verde ao alcance da mão. Não era fácil fazer os comprimidos sair e a Matilde ia-os acumulando na mesa-de-cabeceira sem olhar para eles, os olhos perdidos na estante onde estava o romance, via-o nitidamente virado para baixo na única prateleira vazia onde a Flora o pusera sem o fechar, via a faca malaia que o Cholo oferecera ao Germán, a bola de cristal sobre a sua base de veludo rubro. Tinha a certeza de que a porta se abrira lá em baixo, que o Milo entrara na casa, no quarto da Flora, que estaria a falar com a Flora ou já teria começado a despi-la, porque para a Flora essa tinha de ser a única razão pela qual o Milo estava ali, ganhar o acesso ao seu quarto para despi-la e despir-se beijando-a, deixa-me, deixa-me tocar-te assim, e a Flora resistindo-lhe e hoje não, Simón, tenho medo, deixa-me, mas o Simón sem pressa, pouco a pouco deitava-a atravessada na cama e beijava-lhe o cabelo, procurava-lhe os seios sob a blusa, apoiava-lhe uma perna sobre as coxas e tirava-lhe os sapatos como se fosse um jogo, falando-lhe ao ouvido e beijando-a cada vez mais perto da boca, amo-te, meu amor, deixa-me despir-te, deixa-me olhar para ti, és tão bonita, desligando o candeeiro para envolvê-la em penumbra e em carícias, a Flora abandonando-se com um primeiro gemido, o medo de que se ouvisse alguma coisa no andar de cima, de que a senhora Matilde ou o Carlitos, mas não, fala baixo, deixa que eu assim agora, a roupa caindo em qualquer lado, as línguas encontrando-se, os gemidos, não me magoes, Simón, por favor não me magoes, é a primeira vez, Simón, eu sei, fica quieta, agora cala-te, não grites, meu amor, não grites.

Gritou mas dentro da boca do Simón, que sabia o momento, que tinha a sua língua entre os dentes e lhe fundia os dedos no cabelo, gritou e depois chorou sob as mãos do Simón, que lhe tapavam a cara acariciando-a, sossegou com um último ai mãe, ai mãe, um queixume que se ia transformando num ofegar e num gemido doce e calado, num querido, querido, a branda estação dos corpos fundidos, do fôlego quente da noite. Muito mais tarde, depois de dois cigarros encostados às almofadas, da toalha entre as coxas cheias de vergonha, as palavras, os projectos que Flora balbuciava como num sonho, a esperança que Simón escutava sorrindo, beijando-a nos seios, andando nela com uma lenta aranha de dedos pelo ventre, deixando-se levar, amodorrar-se, dorme agora um pouco, eu vou à casa de banho e volto, não preciso de luz, sou como um gato de noite, sei onde é, e a Flora mas não, e se te ouvem, Simón, não sejas chata, já te disse que sou como um gato e sei onde está a porta, dorme um momento que eu já venho, isso, quietinha.

Fechou a porta como se acrescentasse outro pouco de silêncio à casa, despido atravessou a cozinha e a sala, virou-se para as escadas e pôs o pé no primeiro degrau, experimentando-o. Boa madeira, boa casa a do Germán Morales. No terceiro degrau viu marcada a faixa de luz sob a porta do quarto; subiu os outros quatro degraus e pôs a mão na maçaneta, abriu a porta com um só empurrão. O golpe contra a cómoda atingiu o Carlitos num sonho intranquilo, endireitou-se na cama e gritou, muitas vezes gritava de noite e a Flora levantava-se para acalmá-lo antes de que a senhora Matilde se inquietasse, envolveu-se com o lençol e acorreu ao quarto do Carlitos, encontrou-o sentado ao pé da cama olhando para o ar, gritando de medo, levantou-o nos braços falando-lhe, dizendo-lhe que não, que ela estava ali, que lhe traria chocolate, que lhe deixaria a luz acesa, ouviu o grito incompreensível e entrou na sala com o Carlitos ao colo, a escada iluminada pela luz de cima, chegou ao pé das escadas e viu-os à porta cambaleando, os corpos despidos transformados numa só massa que desabava lentamente no patamar, que resvalava pelos degraus, que sem desprender-se rolava escadas abaixo numa desarrumação confusa até deter-se imóvel no tapete da sala.

Gostamos Tanto da Glenda
Cavalo de Ferro, 2014

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