terça-feira, 30 de setembro de 2014

         Ainda te lembras, avó, da patrulha das garças boieiras nos campos repisados pelas vacas, de como a chuva caía nas planícies e o cheiro da terra entrava por ti adentro até aos ossos? Ainda te lembras do coração da terra que era de lume mesmo quando chovia a palpitar nos braços dos homens e das mulheres que semeavam os campos, das raparigas como tu que esvaziavam os cestos e faziam tudo de novo sempre outra vez? Lembras-te, avó? Foste tu que mo disseste. Contaste dos trabalhos que passaste só porque lias às escondidas com a lanterna do teu pai por debaixo dos lençóis, quando o silêncio alastrava na casa e era como um cancro de luz, e de como te custava suster os braços porque o corpo ficava dormente do muito trabalho e da muita correria para um quase nada e da muita fome. Lembras-te de como eu ficava alegre de haver em mim um pouco da rapariga que tu eras e que lia apesar disso tudo, dos campos das lavras das gentes, de como eu gostava de saber por ti um pouco de mim?
         Agora eu já não sei, avó, se é belo ou inútil que os campos sejam áridos e débeis como antes, não sei se tenho forças para ser tu apesar disso tudo, dos campos das lavras das gentes, não sei se é belo ou se é triste ser tu sendo eu. Mas ficaram as águas dos rios da cidade grande, que de bom tinha apenas, dizia o pai e eu acreditava e hoje já não acredito, a placa que dizia Évora, e o pai nunca dizia Évora dizia casa e dizia lugar aonde a gente pertence mesmo quando se sente mal, quando há ondas de uma impressão azeda qualquer a crescer dentro da gente. O pai às vezes falava assim, o pai às vezes falava muito e depois permanecia calado devagar e depois dizia coisas assim, em frases grandes e soltas, quando havia muita gente na casa sentada em cadeiras de plástico branco amarelecido pelo sol por sobre o cimento do chão do quintal, e havia muito sol no quintal, e era dia de cantarmos sentados à mesa pejada de paios, painhos, chouriços de sangue, alheiras, farinheiras, queijos em salgadura, tintos e trinaranjos e coca-colas, olha qu’essa bodega tem-te mal, e pão de muita farinha muito gabado por todos porque durava tanto que só escassas vezes se deitava fora e nunca sem antes um beijo, filhinho, porque é triste despedirmo-nos do fruto do cereal do trabalho da terra, e por isso dizias beijemos o pão, filhinho, e eu beijava mas como se fosse uma coisa de se ter vergonha, como se beijasse uma rapariga no meio da feira no Rossio e como se essa rapariga fosse a Joana e eu tivesse os olhos todos da cidade suspensos em mim a medir os avanços e recuos das línguas e das mãos e dos braços e das línguas outra vez, e tudo isto ainda redobradamente difícil porque eu nos bicos dos pés pois um rapaz não pode ser mais baixo do que uma rapariga, pelo menos não no meio da feira no meio de muita muita gente vigilante como as moscas, na cama sim onde somos todos gigantes, era assim que o tio Luís falava, e tu rias à mesa avó, e era assim que eu beijava o pão, como se fosse no meio de muita gente uma rapariga que eu beijava.
         E o pai cantava connosco mas só até certa hora, depois deixava-se ficar a um canto a olhar, a olhar muito para ver tudo ao mesmo tempo, e ficava calado devagar e depois de um longo silêncio dizia frases como esta terra cresce e é dentro dos pulsos e é dentro dos olhos dos meus amigos, e às vezes olhava para mim e eu via-lhe os olhos cobertos por uma folha de água embaciada, e ele olhava para mim e tocava-me, o pai às vezes tocava-me nos ombros ou detinha a mão trémula de vinhaça no meu cabelo e dizia olha, estes são os teus amigos, e amigos era uma palavra que crescia dentro de mim muito devagar, uma palavra que se aninhava que se aranhava dentro de mim tão devagar quanto o calar-se do pai onde ele ou eu depúnhamos às vezes palavras assim. E eu ficava calado devagar, a contar os amigos, um a um, a repetir os seus nomes caladamente para mim, a avó e os tios e as tias e os primos e as primas e as irmãs e o Rendeiro que era da cidade grande e vestia roupa cara e comia e ria e cantava como a gente, e o Pardal que às vezes vinha atrasado porque tinha ido à prisão visitar o filho e que chegava e assobiava uma melopeia alegre e não lhe calhava nada bem o nome pois parecia uma rola, era como se tivesse uma rola dentro da boca assobiante quando vinha de ver o filho, e o Senhor João que ó se o era e que eu gostava de ouvir porque dizia as palavras muito devagar e olhava muito para dentro dos olhos da gente e às vezes chorava a cantar. Havia outra frase dessas que o pai dizia e que não me esquece, uma frase que dizia assim, são tão difíceis de morrer, os amigos, tão difíceis como o teu avô, como o teu tio, como o Rendeiro, como os que se calam, como os que eu calo porque o trabalho e porque a vida e porque a morte.
         Eu agora já não sei esquecer que a morte, e não sei se é a morte dos livros se é de ti ou a do André de madrugada na estrada nacional ou se são todas as mortes juntas. E já não sei se é belo ou se é triste ser tu, já não sei se a tua planície patrulhada pelas garças ainda existe nesta terra mapeada por homens em gabinetes de mapear o país a partir do ponto tal. Mas olha, ficaram para mim as águas dos rios da cidade grande como uma gigantesca planície de distintos ofícios de gente semelhante à gente, gente que lavrava as águas, esvaziava os cestos, descarregava os bois das paciências jogadas com a morte. Ficou a cal nos pulmões. E essa estúpida mania de lamber as paredes para secar as aftas, como tu dizias que fizesse, e eu ainda te sei a fazer a cal em grandes latas em grandes bidões, e dizias e repetias sempre então é assim, estas são pedras de cal, metemo-las lá dentro e juntamos a água e depois esperamos sem respirar esta poeira malina que a água de cal tem, e eu fazia tudo muito devagar para não correr o risco de falhar, para ser tudo como tu dizias que seria, e punha a lata da cal à sombra, debaixo da laranjeira ao lado do poço e ia ver todos os dias a formar-se a pasta, eu fazia tudo como tu dizias para que as tuas palavras não fossem palavras de mentir, avó, para que não se separassem dos outros ruídos verdadeiros que havia inteiros por sobre a terra, os ruídos das andorinhas no quintal e dos corvos nos postes do bairro do Frei Aleixo, dos cantares que o tio Tomané me oferecia em minúsculas gaiolas de grilos acompanhados pela chuva, e do baque seco das pressões de ar com o André no quintal, e ele deixava-me sempre ficar com a que tinha a mira direita e ele dizer-me toma que com esta não falhas era um ruído tão verdadeiro como as tuas palavras que eu perfilhava porque eram da terra como aquelas coisas todas.
         Mas há tanta coisa que eu já não sei fazer como tu dizias, avó. Olha, já não sei ser imprudente. Falar tudo de uma vez para não ficar com a cabeça cheia de fantasmas e a barriga abafada por um nó de muita gente a que não devia guardar rancor, porque a gente um dia está de abalada, filhinho, e depois de abalada só as coisas boas ficam por dar. Eu já não sei, avó, se as coisas boas são o contrário das coisas más. Já não sei ser intransigente na alegria e na paz, porque já não sei o que é ter os políticos sempre emudecidos pelo comando da televisão da tua cozinha e acredito que há no avesso de tudo um avesso e saber estas coisas faz-nos mal e faz-nos bem e faz-nos mal. E eu já não sei ser como a gente, e agora sou só este silêncio todo mesmo que saiba que este silêncio é só silenciamento e não um silêncio silêncio como deve ser um silêncio bom, como era o silêncio da gente. Sou este silêncio que nem sequer é perdão, mas sim um arranjo de nervos de culpa de remorso de um lamento incontinente porque os dias passam, avó, e continuam a ser uma notícia escusada, uma notícia inutilmente prolongada.     
         Não sei se sabes, mas enquanto morrias no país no país no país no país. E hoje anda-se para aqui encalhado e não há um país mas uma europa de mercadorias e mercados de dívidas e saldos e peneiras e de orçamentos de um cansaço de uma vida que afinal não nos deve nada, uma vida em que o próprio amor ocupa apenas a coluna das despesas e em que o tempo é um investimento sem retorno. Não sei se sabes, avó, mas os papéis do futuro estão selados por um funcionário cego e estamos todos à espera em repartições para cujos partidores o mundo é uma sociedade anónima a inserir os dados nos ficheiros apagados da memória porque o passado é assim uma espécie de processo arquivado e o presente está apoiado sobre um corpo que respira a prestações incertas apostando as últimas coroas nesta vida que garantimos juramos ser a nossa porque a gastámos a pronto.
         E hoje as paredes já não sabem a açúcar amarelo, avó, já não sabem ao que sabiam quando estavam pintadas de cal. Hoje as paredes já não sabem a nada. Quando íamos à praça do Giraldo, lembras-te?, no Verão, para ver as bandas, e encontrávamos lá muita gente, amigos e conhecidos que nunca eram só conhecidos mas pessoas pessoas, quando íamos à praça do Giraldo e era Verão e eu ficava a pensar e a entender e admitia que tinhas razão quando dizias que a praça levava aquele nome porque era ali que a gente geralmente se encontrava, quando íamos à praça para ver os concertos que havia no Verão, as paredes das casas e das lojas sabiam às vezes a palavras que eu não entendia mesmo que ficasse a lê-las calado devagar. Hoje as paredes já não dizem nada. E até nos campos o cheiro do pêlo das vacas molhadas pela chuva, o cheiro da lama bicada pelas garças é diferente. Agora tudo está diferente. E eu já não sei se é triste se é belo ser igual à gente que é igual à gente.

         Não sei se sabes, avó, mas à noite, quando leio, penso que é a tua voz que pensa dentro da minha cabeça certas palavras. Palavras como pão, como beijo, como açúcar. Palavras como cal. E quando volto à cidade, quando passo pelo bairro, digo casa e digo lugar aonde a gente pertence mesmo que. Mas tu morreste. E agora as paredes estão cheias de palavras que não dizem nada. E o país o país o país já não me pode fazer mal.

sábado, 27 de setembro de 2014

Mundo



Quando Santo Agostinho escrevia os seus Solilóquios.
Quando o último soldado alemão se desmoronava de asco e de impotência.
Quando as guerras púnicas
e as mulheres esbofeteadas no patamar de umas escadas,
então,
quando Santo Agostinho escrevia A cidade de Deus com uma mão
e com a outra tirava notas a fim de combater as heresias,
precisamente então,
quando ser prisioneiro de guerra não significava a morte, mas apenas a                                                                                                           [casualidade de se estar vivo,
quando as pérfidas mulheres invioláveis se dedicavam a reparar as                                                                                                                       [constelações deterioradas
e os isqueiros automáticos desfaleciam de póstuma ternura,
então, já o disse,
Santo Agostinho andava a corrigir as provas do seu Enchiridion ad Laurentium e os soldados alemães urinavam em cima das crianças 
                                                                                                      [recém-bombardeadas.

Triste, triste é o mundo,
como uma rapariga órfã de pai que os salteadores de abraços imobilizam                                                                                                                              [contra um muro
Muitas vezes temos pretendido que a solidão dos homens se enchesse de                                                                                                                                           [lágrimas.
Muitas vezes, infinitas vezes, temos deixado de dar a mão
e não temos conseguido mais nada a não ser umas quantas pedras                                                                                     [obstinadamente intercaladas entre os dentes.

Ó se Santo Agostinho se tivesse dado conta de que a diplomacia europeia
andava comprometida com artistas de varietés de muito duvidosa reputação,
e que o exército norte-americano costumava receber pacotes nos quais a mais                                                                                                    [ligeira falha de ortografia
era aclamada como venturoso presságio da liberdade dos povos oprimidos pelo
                   [endoluminismo.
Vou chorar de tanta perna partida
e do tanto cansaço observável nos poetas com menos de dezoito anos.

Nunca se conheceu desastre igual.
Até as Irmãs da Caridade falam de crise
e escrevem-se grossos volumes sobre a decadência do creme de barbear entre                                                                                                                            [os esquimós.

Digam aonde vamos parar com tanta angústia
e tanta dor de pais desconhecidos entre si.

Quando Santo Agostinho se der conta de que os telefones automáticos                                                                                                                       [deixaram de funcionar
e de que os seguros contra incêndios foram timidamente escondidos nos                                                                                                 [cabelos das rapariguinhas loiras
ah então quando Santo Agostinho tiver sabido de tudo
um grande raio descerá sobre a terra e num abrir e fechar de olhos 
                                                                          [converter-nos-emos todos em idiotas.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Que cada um acrescente o que souber



Acontece a uma pessoa gostar
de um sapinho, por favor, não o pisem,
também a um continente como a Europa,
continuamente
fendido, ferido à queima-roupa,
e, simultaneamente, gritando
outras palavras nos estorvam
tais como “armistício”, “teatro”,
“suspensão de hostilidades”, “era tudo uma brincadeira”, e outras.

Mas a gente
acredita nisso, e pendura penduricalhos
e deita pela janela bandeiras e um tapete,
como se fosse verdade,
como (é costume dizer-se) se tal coisa…

Acontece, vi-o já com os meus próprios olhos.
Durante vinte anos a brisa ia de vento em popa,
e voltaram-se a ver chapéus de primavera
e parecia que ia voar a rosa.

Em 1939 chamaram para a missa os pobres homens.
despejaram-se umas quantas bombas
e durante a noite houve fogos japoneses na baía.
Estávamos – outra vez – metidos noutra.

Depois ouvi falar no quarto ao lado.
(Uma mulher estrangulada, louca.)
O resto, vocês aprenderam-no directamente.

Sabíamos de sobra.

sábado, 20 de setembro de 2014

Mas é apenas um corpo - sobre um romance de Vergílio Ferreira (segunda parte)


E, no entanto, o encontro erótico é fugaz. A sua insuficiência resulta da criação de um sistema de tabus, na acepção de Rivière, associados ao universo feminino, que o mitifica e sacraliza, tornando-o objecto de um desejo inalcançável, fazendo deste uma figura de uma ausência elemental, de um perigo alienatório. É onde Alberto se descobre o «absurdo de uma comunicação» (Estrela Polar). Num universo fundamentalmente masculino, o feminino (a possível ligação) transforma-se em alteridade radical, em realidade sempre fugidia. A fugacidade da revelação do excesso sagrado do feminino não resiste à «incrível redução da pessoa a um objecto» (Estrela Polar). É que «o cansaço aconteceu, um indizível desencanto (…) Há um instante na minha memória, em que todo o mistério de Aida se desvanece. Estremece de alvura todo o seu corpo na sombra, mas é apenas um corpo. Instantâneo, limitado, avulso» (Estrela Polar).

Assim, conforme observa Hélder Godinho, «a Presença degrada-se sempre que “desce” à terra». A comunhão perfeita não é mais do que «um mito da nossa pobre solidão» (Estrela Polar). Esse fracasso relaciona-se, em grande medida, com a relação conflitual que se estabelece com o feminino, em particular ao nível da relação sexual/sensual, na qual o perigo de engolimento do eu pelo outro se agudiza, segundo uma concepção da relação amorosa como antropofagia, vocação a um tempo gregária e assassina. A mulher surge como a vagina dentada a que se refere Eliade, o amor está «travado de dentes em todo o corpo» (Estrela Polar). Manifesta-se, assim, o erotismo como espaço do interdito.

Ecoa aqui sem dúvida Bataille, pois a incapacidade de ligação à alteridade impossibilita, por conseguinte, aquilo a que o autor chama «o crescimento do conjunto e a dádiva dos indivíduos». A obsessão individualizante incapacita a realização amorosa, a ligação, configurando pelo contrário a oportunidade para o engolimento, para o fusional prisional e não libertador, demonstrando que «o sentido último do erotismo é a morte» (Bataille). O erotismo, associado assim freudianamente a uma tanatologia, transforma-se por essa via num «acto de violência que fala a voz do domínio, da destruição» (Invocação ao Meu Corpo).

O que poderia ter sido uma e-volução, um percurso para a ek-sistência, transforma-se em in-volução, em in-sistência, submersão do eu em si, na radicalização da alteridade do outro. A emergência do egotismo - «Se eu nunca a amei a ela nem a ninguém, se não amo senão a mim» (Estrela Polar) – agudiza portanto o problema da incomunicabilidade. O aparicional do instante amoroso revela-se pois na sua insuficiência de teor apocalíptico - «Como aceder aos outros? Cai a noite a toda a pressa, é tão duro estar só» (Estrela Polar) – e alucinatório - «Estamos sós connosco mesmos, perdidos na nossa loucura, no termo da nossa busca» (Estrela Polar), recordando que «a comunhão perfeita não existe» (Estrela Polar), que, conforme Pascal, se morre sempre sozinho.

Revela-se por esta via a persistência do romance como género do desencanto (Lukács), abrindo caminho para o crime. Porque o instante da plenitude amorosa é um «ápice infinito de quem parou de respirar (…) uma infinitesimal vibração» (Estrela Polar), o desejo de fixação de dito instante preconiza o crime como potencialidade, a morte (o homicídio) como cristalização da plenitude da vida: «Acaso a morte é a comunhão mais perfeita?» (Estrela Polar). Perante a evidência de que a propriedade sagrante do feminino se dissipa com demasiada celeridade, de que «quem dormia comigo era alguém que eu aborrecera, que se me gastara» (Estrela Polar) Tânatos aloja-se de novo em Eros, a violência impõe-se com o fim de anular a face real do feminino que devém da sua temporalidade eliminatória do absoluto que a suspensão infinitesimal do encontro erótico contivera: «Fito Alda violentamente, para lhe reduzir a presença ao seu limite. Tento materializar-lhe (…) tudo o que nela é significado» (Estrela Polar).

O crime deriva assim do desejo de que «a morte te abra a grandeza da vida, ta ensine» (Estrela Polar), anulando a insuficiência do feminino desejado. Porque o amor é uma «fugidia verdade, estrela polar incerta, verdade instável» (Estrela Polar), a morte é um apelo de fixação do instantâneo de plenitude aparicional: «Que eu morra agora (…) nesta hora lúcida sem passado nem futuro, nítida» (Estrela Polar). Matar a mulher «para a ter enfim a seu lado na comunhão indestrutível» (Estrela Polar) é pois a derradeira decisão existencial de um condenado, a última oportunidade para afirmar a sua própria liberdade decisora, a potencial expiação de um outro crime, do crime de morrer-se e de a vida ser insuficiente na sua impostura quotidiana: «Um crime era pois um acto, uma superação, um triunfo?».

Retomando assim o absurdo da finitude como núcleo problematizante do romance, a condenação à prisão, agudizando definitivamente a solidão existencial do protagonista/narrador, configura o espaço da escrita como derradeiro crime compensatório, pela emergência do projecto memorial/circular contra a linearidade teleológica de um tempo que a narrativa pretende anular, fazendo eco dessa «misteriosa necessidade de tentar atingir o inatingível, o recomeçar sempre como se começasse, o persistir numa luta que jamais se ganhará» (Conta-Corrente III), «Escrever constantemente, recomeçar constantemente é reinventar em nós uma nova Primavera; reinventar a alegria do início (…); recusar obstinadamente a certeza da morte» (Conta-Corrente-IV).

A circularidade do romance, com a predição de um futuro que continuamente reincide na narrativa do romance e a repete infinitamente, concretizando aquele terceiro tempo, transcendente, esférico, de Parrett, traça-se pela ilusão útil da escrita como fuga à pena capital, à pena de morte a que todo o humano está condenado por condição da sua temporalidade linear, que sempre, fatalmente, desagua na morte. A literatura visa assim a permanência de algo que «participe de mim e seja eu para lá da morte e me testifique e recupere, me seja vida depois eu a não ser, me invente imortal na minha absoluta e inexorável finitude» (Estrela Polar).


Aderindo assim ao ser-contra-a-morte de Malraux, valorizando a arte como anti-destino, Estrela Polar tematiza a potencialidade salvífica da escrita como fixação do aparicional: «Ah, escrever um romance que se fixasse nessa iluminação viva de nós, nessa dimensão ofuscante do halo divino de nós» (Estrela Polar). Partilhando daquela fenomenologia do redondo de Bachelard, a circularidade que o final do romance sugere institui o próprio texto como crime derradeiro, compensatório do castigo a que todo o homem está votado apenas por existir. A desejada infinitude encontra no espaço do texto o potencial fragmentário da resistência à estagnação numa ordem linear e acabada: «A obra de arte inacabada (…) Mais do que nunca isso nos fascina. O fragmento ou o inacabado acentua a voz do imaginário, antes de ser a do perfeito silêncio» (Pensar). No que o projecto erótico fracassara poderá a literatura, enfim, vingar. Contra um castigo para cuja justificação não há culpados, escrever será talvez o último dos crimes perfeitos.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Se tu soubesses como é preciso que eu esteja em ti - sobre um romance de Vergílio Ferreira (primeira parte)


A ironia, que se traduz na consciência infeliz de Hegel, no sentimento trágico unamuniano, ou na náusea sartriana, sublinha o abandono do sujeito ao caos de uma realidade contraditória, uma certa não coincidência do homem consigo mesmo, conforme afirmava Ricoeur: «Sinto-me desdobrado e a outra pessoa de mim aterra-me. Há um muro de gelo a separá-las, há uma muralha de fogo» (Estrela Polar); «A realidade está atrás da realidade e essa é que é a exacta realidade» (Invocação ao Meu Corpo).

A superação deste hiato constitui a problemática central do romance vergiliano, na demanda da re-coincidência ipse/idem que possibilitasse, segundo ainda o filósofo francês, a realização da idealidade do ego, o fugaz e instantâneo fulgor da epifania da sua plenitude. Tal hiato é, em Estrela Polar, dado pela tematização da disforia amorosa, recontada a partir da prisão, metáfora das condições limitantes do humano (solidão, incomunicabilidade, tédio). Nela cumpre o narrador e protagonista, Alberto, pena por homicídio de Aida, sua mulher. Alberto surge como um homem desejante da plenitude de um amor ideal, encontrando apenas hipóstases desse sonho, o nada das suas relações comezinhas, quotidianas e fugidias, concretizadas em Aida e Alda, incapaz de consumar com sucesso o projecto erótico-desiderativo, primeira potencialidade redentora do crime de, como afirmava Schopenhauer, estar o universo em luta para nada, de ser a vida, parafraseando Aleixandre, entre duas obscuridades um relâmpago.

O projecto desiderativo resulta da ruptura com as figuras do passado familiar, dada pelo relato da morte dos pais, motivo separacional do eu a si mesmo. Dita ruptura preconiza a urgência da fixação de um valor num mundo degradado, ponto-de-fuga antropológico base de toda a narrativa, de acordo com Lukács, caucionando a premência da fixação de uma estrela polar. A ruptura com o espaço topofílico, aquele que, segundo Bachelard, mantém uma relação tímica com o sujeito, o espaço que designamos de familiar, introduz a necessidade de uma adaptação do sujeito a um novo espaço que no seu horizonte desempenhe uma função similar, um espaço de familiaridade.

O familiar identifica-se com o materno, tal como a obsessão com o fantasmáticoda presença da mãe como memória engolidora confirma: «presença imóvel e sem face», «minha mãe vagueia com o seu azorrague pelas sombras desta noite» (Estrela Polar). Poderíamos por isso empregar a teoria freudiana que dá conta de uma passagem da fase unitiva mãe-filho (oral succionante) para a fase oral canibalística, em que se produz uma individuação forçada, portadora de desamparo, angústia e violência, que induz a necessidade do erótico, o desejo das ligações, de refundação de um amor diatrófico, na terminologia de Spitz, ou de uma relação anacrilítica (penso ainda em Freud), relação de dependência relativa ao objecto do amor figurado pela experiência da filiação.

«E violentamente, quando apareço no quarto, estampa-se-me nos nervos uma imagem agressiva, de escárnio, cortada de ângulos, como se imobilizada no acto de uma blasfémia: o rosto de minha mãe, desarticulado, perdera a unidade que eu conhecia» (Estrela Polar). O motivo da morte da mãe introduz uma ruptura com um passado familiar/materno e uma perda da unidade, um abandono ao projecto - «a Mãe muda não me diz o que sou: deixo de ter raízes, flutuo dolorosamente sem existência» (Barthes). Dito projecto deve traduzir-se, para ser bem sucedido, no encontro com um núcleo familiar/feminino renovado. O desejo do feminino, fulcro temático de Estrela Polar, é o desejo de uma figura de mediação no processo de criação dessa re-fundação familiar, como figura investida de amor maternal e erótico a um tempo. É então que o protagonista se descobre desejante de maternalidade e de genitalidade (Barthes). O desejo de ligação ao feminino desenvolve-se portanto, em perspectiva iniciática, como um regressus ad uterum, na leitura de Eliade.

Surge assim a demanda de uma mulher que suturasse a orfandade, o sentir-se estranho face à anulação do topofílico, à desfamiliaridade (Bhabha). Para lograr a união do eu a si mesmo (do ideal ao real), o protagonista deseja as ligações de carácter amoroso que lhe permitam «encontrar um espaço para estabelecer o seu Presente» (Hélder Godinho). A demanda da dimensão metafísica do eu associa-se, em Estrela Polar, à procura de um tu, a um impulso fusional como condição de sobrevivência: «Ah, se tu soubesses como é preciso que eu esteja em ti, que eu não morra, que eu não morra» (Estrela Polar).

«Esta simples ilusão de um elo de perenidade», «o apelo absoluto da identidade absoluta, a exigência da comunhão verdadeira» (Estrela Polar) elege o projecto desiderativo como valor que coordena a narrativa, o que sustentaria a premissa de Girard. O desejo amoroso traduz-se por conseguinte num desejo de comunicabilidade, na medida em que a existência individual depende de um dialogismo fundador. Nesta concepção especular de fundação do Eu, que suporta a leitura de um Lacan, que inscreve a alteridade como condição da ipseidade, para empregarmos os termos de Ricoeur, mapeia-se um percurso de idealização da relação erótica. A fundação do eu pela sua inserção na história da alteridade origina um desejo de comunicabilidade como condição ética da revelação identitária (Lévinas), desejo esse agudizado pelo confronto com alteridades conflituais e resistentes como são Aida e Alda.

O acto sexual surge então como forma de penetração espiritual, até à identidade: «As nossas relações nunca se estabelecem com o “eu “ dos outros, mas com o que está para cá dele (…) Há só uma situação em que tentamos atingir um “eu”; é quando fazemos amor» (Conta-Corrente III). A violência do encontro sexual com a mulher resulta dessa procura de uma presença sagrada que a excede: «Há um além para lá de ti, da pessoa que vejo e está aqui e que é a pessoa que és» (Estrela Polar), «Sinto apenas o aroma do seu corpo e um desejo violento de o destruir, de passar além… (…) Não, não são os teus seios frescos e brancos, a alvura das tuas ancas de graça, a tontura do teu íntimo calor. É para além disso o que isso diviniza, é o teu deus, a tua chama oculta.» (Estrela Polar). 

O encontro sexual acede, assim, ao «espaço da infinitude» (Estrela Polar). Objecto do projecto desiderativo do romance, dito encontro possibilitaria a concretização do instante epifânico da aparição, da sartriana coincidência do en soi com o pour soi, essa «experiência da auto-revelação de nós próprios» (Invocação ao Meu Corpo), que «traz aos homens a sua dimensão metafísica, a zona essencial de si próprios onde verdadeiramente são, unindo-os com a Ordem» (Hélder Godinho). A plenitude da comunhão com a alteridade feminina, fonte da possível redenção do sujeito desamparado num mundo des-ordenado pela ausência do familiar, resulta do instante do encontro amoroso que revela o excesso do feminino como abertura para o que no protagonista é do domínio da sua idealidade, da sua verdade, da sua plenitude. 

domingo, 14 de setembro de 2014

Todas as palavras


A leitura da poesia reunida de Manuel António Pina confirma o conjunto de problemáticas em torno das quais a sua obra se sustenta, relatadas a uma preocupação auto-reflexiva que privilegia o questionamento do dilema da identidade: “Eu sou talvez aquilo que me falta”. A convivência com a experiência ironizada do eu desenha-se a partir de uma série de dualidades (eu/outro, presente/passado, poesia/prosa) que concretiza o pressentimento de uma descoincidência entre realidade e ilusão. Partindo, por exemplo, da hipótese quântica da existência de universos paralelos - “Determinei, pois, dois lados: um, admitamos, Real; outro Virtual” – recupera-se um registo com uma vocação amiúde surrealizante e desconstrutiva que dá conta de uma dissidência entre concreto e projectivo - “Entretanto dobrar-se-ia o mundo / (o teu mundo: o teu destino, a tua idade) / entre ser e possibilidade” - que instala a interrogação acerca da possibilidade cognoscente do indivíduo e do sentido para a existência, para isto. Partícipe fulcral da dualidade que assinala a existência, é o próprio eu quem concretiza de forma mais radical o problema da descoincidência realidade-ilusão que arvora na dissidência dele a si mesmo: “Agora quem sente / isto fora de mim, / quem é este Ausente?”; “Um intruso grita / dentro de mim, oiço-o no coração”; “Alguma coisa fora de mim / está escondida em mim / como um coração exterior”.

O indivíduo reconhece assim a possibilidade de que “talvez tudo exista exilado / de alguma verdadeira existência”. Esse exílio aparece como uma condição decorrente da interposição de um transcendental (a própria linguagem) entre o eu e o mundo, que inviabiliza o acesso daquele a este, na medida em que se descobre falsificado, mediado ele próprio pela malha referencial da linguagem que o circunscreve e que não comunica com a verdade: “Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois. / E entre mim eu, isto é, palavras”. Assim, a linguagem, o conjunto de sentidos que dela em cada indivíduo se desprende, limita a possibilidade percepcional do eu, encerrado como está em si mesmo -“É duro sonhar e ser o sonho, / falar e ser as palavras!” - numa inversão da lógica discursiva que faz do próprio sujeito um enunciado: “aquele que escreve / é também eternamente escrito”. Uma totalização da mediação linguística do acesso do eu à realidade, como grelha interpretativa irredutível ao todo - “O que é feito de nós senão / as palavras que nos fazem?” – lança o indivíduo num universo omisso, de silenciamentos, de ausência de um cenário significativo: “As palavras esmagam-se entre o silêncio / que as cerca e o silêncio que transportam”. Desse modo se agudiza a impossibilidade de uma apropriação da realidade por parte de um sujeito que apenas a entrevê como um dado exterior: “eu sou o lugar onde tudo isto se passa fora de mim”. Encerrado como está no ciclo da sua própria consciência limitada, obsessivamente revisitada - “eternamente regressamos / ao sítio de onde nunca saímos” – a realidade transporta o signo de uma absoluta alteridade - “A realidade é uma hipótese repugnante, / fora de mim, entrando por mim a dentro, / solidão errante / órfã de centro”, - despojada de uma substância concreta, pois o eu está submerso no conjunto de significados que radicalmente o perfazem: “Volto, pois, a casa. Mas a casa, / a existência, não são coisas que li? / E o que encontrarei / se não o que deixo: palavras?”.

A emergência da ficcionalidade latente em cada eu, quando consciencializada – e esse é o lado mais trágico da poesia do autor -, reduz o seu horizonte projectivo, limita nele a sua telicidade: “eis o que há: a falta de alguma coisa”. O sujeito, descobrindo-se desprovido de finalidade, orienta o seu olhar para uma memória ironizada por um certo laivo crítico, objectivante, que retoma a descoberta do grão de areia da consciência que obstrui o ingénuo mecanismo do optimismo. Também na memória habita apenas a pessoa ausente, aquele eu que já não sou e que invento ao lembrá-lo. O carácter fictício invade também este espaço - “Literatura. Tornámo-nos, tu e eu, e também aquelas terríveis quatro horas da tarde, literatura. Em que outro lugar, em que outra morte, poderíamos nós ter encontrado refúgio?”. Presente, passado e futuro comprovam desse modo a incompletude do projecto de literalidade que o sujeito se prometera: “Vai pois, poema, procura / a voz literal / que desocultamente fala / sob tanta literatura.” Incapaz de pronunciar a coisa tal como ela é, a palavra é tão somente lateral - “(…) fez-se tarde / no que pode ser dito. Onde estavas / quando chamei por ti, literalidade?” -, ela que é a última morada do eu, esperança derradeira também defraudada: “Nunca estive tão longe e tão perto de tudo. / Só me faltavas tu para me faltar tudo”.

O mundo converte-se assim em lugar de algum modo inóspito, em que o sujeito não pode fixar um espaço topofílico, um espaço de familiaridade, imerso como está no problema da sua ausência de personalidade: “As pessoas têm a sua casa e a sua doença / Mas a casa da pessoa é a sua doença”. Viver transforma-se na procura de dito espaço, da supressão do desamparo existencial por alguém incapaz de cumprir a maturidade num presente que o aliena, prisioneiro ainda do conforto da casa familiar, da casa das origens: “Os homens temem as longas viagens, / os ladrões da estrada, as hospedarias, / e temem morrer em frios leitos / e ter sepultura em terra estranha. // Por isso os seus passos os levam / de regresso a casa, às veredas da infância, / ao velho portão em ruínas, à poeira / das primeiras, das únicas lágrimas”. O desejo de “dormir um sono sem olhos / e sem escuridão, sob um telhado por fim”, de encontrar “um sítio onde pousar a cabeça”, falha onde falha até mesmo a literatura. Os livros, "coisa hipócrita e escura", compõem-se das mesmas palavras que compõem o sujeito, que lhe negam o acesso ao real (a haver um): “As palavras (…) insubstanciais seres, incapazes também eles de compreender, / falando desamparadamente diante do mundo”.

No entanto, “é à sua volta / que se articula, balbuciante, / o enigma do mundo”. Na verdade, por todos os lados cercado por elas, o poeta sabe ainda que “Já não é possível dizer mais nada / mas também não é possível ficar calado.” E redescobre finalmente a satisfação do próprio processo, do estar a caminho onde estar e ser se confundem. Talvez a essência do homem não seja mais do que esse ser o caminho, o existir em função de uma ausência que lança o eu na vertigem da vida: “O braço que falta ao mendigo é que o sustenta”. E talvez por isso seja necessário preservar a impossibilidade de chegar ao fim, pois “se encontraste o que procuravas / perdeste-o e não começou ainda a tua procura”. Em certas zonas do caminho fulgurarão os instantes revelacionais em que de súbito o eu se descobre às portas de si mesmo: “E todavia em certos dias materiais / quase posso tocar os meus sentidos, / tão perto estou, e morrer nos meus sentidos”. É onde se aventa um balanço final para isto: “É um mundo pequeno, / habitado por animais pequenos / - a dúvida, a possibilidade da morte - / e iluminado pela luz hesitante de // pequenos astros – o rumor dos livros, / os teus passos subindo as escadas, / o gato perseguindo pela sala / o último raio de sol da tarde”. Esses pequenos astros são ainda um sentido. Na poesia de Manuel António Pina é sempre tarde demais para o sentido. Mas ser tarde é ainda um modo de se ter tentado. E triunfar do impossível talvez seja ter andado por aqui somente, como ele andou, a tentar.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

E agora? Lembra-me

O filme de Joaquim Pinto, E agora? Lembra-me, com o qual o Cinema Ideal, uma nova sala, inaugurou o seu programa, é um hino: coincide com a glória e o louvor da vida. É uma daquelas obras que interrompem o nosso quotidiano e marcam uma cesura. A ideia prévia de que o filme é uma espécie de diário do realizador que acompanha o tempo em que ele faz um tratamento experimental para o vírus da hepatite C (que coabita, no mesmo corpo, com o vírus do HIV) faz-nos esperar algo que não é aquilo que depois vamos ver: esperávamos uma elegia, um lamento, e o que temos é um hino, uma celebração, como os cantos em honra dos deuses; esperávamos gritos de revolta, elucubrações sobre a experiência daquilo relativamente ao qual não se pode ter nenhuma experiência, a morte, e o que temos é júbilo e glorificação da vida. Esta oposição que aqui estabelecemos entre hino e elegia define uma tensão essencial que encontramos em toda a história da poesia: ou é de carácter celebratório e canto de louvor (e então tem um carácter de hino), ou é um lamento por algo que se perdeu (e é elegíaca). Se o que se perdeu é um objecto puramente fantasmático, completamente irreal, submetido a uma introjecção, o sentimento que daí decorre, como sabemos, é a melancolia. O filme começa com uma lesma a deslizar (diríamos “lentamente”, mas há alguma lesma que deslize com rapidez?) até desaparecer do plano. E o que nos acontece, logo aí? Uma revelação: nós não sabíamos que uma lesma, um ser viscoso que causa geralmente alguma repugnância, podia afinal ser tão bela. E que o seu deslizar não é completamente silencioso: há uma música ténue do deslizar da lesma que o filme de Joaquim Pinto torna audível. Começa aí um “aleluia” que vai crescendo e um louvor abertamente franciscano das criaturas, de todas as criaturas: lesmas, homens, cães, plantas, árvores. No limite, o filme de Joaquim Pinto, do qual esperávamos que fosse centrado num Eu completamente totalitário (isto é, no centro de tudo porque, afinal, a sua contingência é o motivo primeiro do filme), opera o supremo milagre de inaugurar um campo transcendental sem eu nem consciência, algo como uma paisagem ética primordial, em que nenhuma psicologia e nenhuma subjectividade poderão jamais penetrar. E esse campo é o de uma pura imanência, a de uma identidade absoluta entre a imanência (o mundo das coisas, dos animais, das pessoas) e a vida. A única mística onde nos instala este filme que vai sendo percorrido por citações e comentários da Bíblia (feitos sobretudo por Nuno Leonel) é uma mística da imanência, a mística da lesma que desliza e nos faz descobrir que uma lesma pode ser sublime. Podemos chamar a isto beatitude? Sim, se reclamarmos a ideia espinosiana de beatitude, da experiência de si como causa imanente, que é uma forma de aquiescência. Mas o filme de Joaquim Pinto é absolutamente exemplar ainda noutro aspecto: ele apreende o que é mais difícil de descobrir e que se torna a sua matéria primeira: o quotidiano. O quotidiano torna-se, nele, quase uma utopia. E, aí, se íamos à espera da “epopeia”, dos valores heróicos de uma experiência-limite, aquilo a que temos direito (e devemos agradecer) é a insignificância do quotidiano. E, tal como acontecia com a lesma, nós muito provavelmente não sabíamos que esse quotidiano insignificante afinal era tão difícil de descobrir, tão cheio de segredo. Julgávamos conhecê-lo, mas o filme de Joaquim Pinto faz-nos ver que quase sempre ele nos escapa. Para estar à altura deste filme, é preciso afastar uma película compacta e resistente.


Texto de António Guerreiro
Ípsilon

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

sábado, 6 de setembro de 2014

Sala de Psicopatologia (1971)



Ao cabo de anos na Europa.
         Isto é, Paris, Saint-Tropez, Cap
         St. Pierre, Provença, Florença, Siena,
         Roma, Capri, Ischia, São Sebastião,
         Santillana del Mar, Marbella,
         Segovia, Ávila, Santiago,
                            e tanto
                            e tanto
                            para não falar de Nova Iorque e de West Village com rastos de raparigas estranguladas
                            - quero que um negro me estrangule – disse
                            - o que queres é que te viole – disse (ó Sigmund, contigo acabaram-se os homens do mercado matrimonial que frequentei nas melhores praias da Europa)
         e porque sou tão inteligente que já não sirvo para nada,
         e porque tenho sonhado tanto que já não sou deste mundo,
         aqui estou, entre as inocentes almas da sala 18,
         persuadindo-me dia após dia
         de que a sala, as almas puras e eu temos um sentido, temos um destino,
         - uma senhora originária do mais obscuro bairro de uma aldeia que não figura no mapa diz:
         - O doutor disse-me que tenho problemas. Eu não sei. Eu tenho alguma coisa aqui (toca nas mamas) e uma vontade de chorar que mamma mia.
         Nietzsche: «Esta noite terei uma mãe ou deixarei de ser.»
         Strindberg: «O sol, mãe, o sol.»
         P. Éluard: «É preciso bater na mãe enquanto é jovem.»
         Sim, senhora, a mãe é um animal carnívoro que ama a vegetação luxuriosa. No momento em que a pariu abre as pernas, ignorante do sentido da sua posição destinada a dar à luz, à terra, ao fogo, ao ar,
         mas depois uma pessoa quer voltar a entrar nessa maldita vulva,
         depois de ter tentado nascer por mim mesma extraindo a minha cabeça pelo meu útero
         (e como não consegui, procuro morrer e entrar no pestilento refúgio da oculta ocultadora cuja função é ocultar)
         falo da vulva e falo da morte,
         tudo é vulva, eu já lambi vulvas em vários países e tudo o que senti foi orgulho pelo meu virtuosismo – a Mahatma Gandhi do linguajar, a Einstein do minete, a Reich da lambidela, a Reik de abrir caminho entre pêlos como os de sujos rabinos – oh! o gozo da ronha!
         Vós, os insignificantes médicos da 18 são ternos e até beijam o leproso, mas
         casar-se-iam com o leproso?
         Um instante de imersão no baixo e no obscuro,
         sim, disso são capazes,
         mas logo vem a vozinha que acompanha os jovenzinhos como vós:
         - Poderias fazer de tudo isto uma piada, não é verdade?
         E
         sim,
         aqui no Pirovano
         há almas que NÃO SABEM
         por que motivo receberam a visita das desgraças.
         Pretendem explicações lógicas os pobres pobrezinhos, querem que a sala – verdadeira pocilga – esteja muito asseada, porque a ronha causa-lhes horror, e a desordem, e a solidão dos dias vazios habitados por antigos fantasmas emigrantes das maravilhosas e ilícitas paixões da infância.
         Oh! beijei já tantas betinhas para dar por mim de repente numa sala cheia de carne de prisão onde as mulheres vêm e vão falando das melhoras!
         Mas
         curar o quê?
         E começar a curar por onde?
         É verdade que a psicoterapia na sua forma exclusivamente verbal é quase tão bela como o suicídio.
         Fala-se
         Mobila-se o cenário vazio do silêncio.
         Ou, se há silêncio, este transforma-se na mensagem.
         - Porque está calada? Em que pensa?
         Não penso, pelo menos não executo o que chamam pensar. Assisto ao inesgotável fluir do murmúrio. Às vezes – quase sempre – estou húmida. Sou uma cabra, apesar de Hegel. Fosse eu um tipo com uma betinha assim e comia-me e ela levava com ele até que acabasse a ver curandeiros (que sem dúvida mo chupariam) a fim de que me exorcizem e me procurem uma boa frigidez.
         Húmida
         Vulva do coração de criatura humana,
         coração que é um pequeno bebé inconsolável,
         «Como uma criança que mama silenciei a minha alma» (Salmo)
         Ignoro o que faço na sala 18, para além de honrá-la com a minha presença prestigiosa (se minimamente gostassem de mim ajudar-me-iam a anulá-la)
         oh! não é que eu queira flirtar com a morte
         eu quero apenas pôr termo a esta agonia que se torna ridícula à força de prolongar-se,
         (Ridiculamente te adornaram para este mundo – diz uma voz apiedada de mim)
         E
         Que te encontres contigo mesma – disse.
         E eu disse-lhe:
         Para reunir-me com o migo de comigo e ser uma só e a mesma entidade com ele tenho de matar o migo para que assim morra o co e, deste modo, anulados os contrários, a dialéctica supliciante finaliza na fusão dos contrários.
         O suicídio determina
         uma faca sem lâmina
         à qual falta o cabo.
         Então:
         adeus sujeito e objecto,
         tudo se unifica como noutros tempos, no jardim dos contos infantis repleto de regatos de frescas águas pré-natais,
         esse jardim é o centro do mundo, é o lugar do encontro, é o espaço feito tempo e o tempo feito espaço, é o alto momento da fusão e do encontro,
         fora do espaço profano no qual o Bem é sinónimo da evolução das sociedades de consumo,
         e longe dos merdosos simulacros de medir o tempo através de relógios, calendários e outros objectos hostis,
         longe das cidades nas quais se compra e se vende (oh! nesse jardim para a menina que fui, a pálida alucinada nos subúrbios malsãs pelos quais errava pela mão das sombras: menina, minha querida menina que não tiveste mãe (nem pai, é claro)
         De maneira que arrastei o meu rabo até à sala 18,
         na qual finjo acreditar que a minha doença de distância, de separação de absoluta NÃO-ALIANÇA com Eles
         - Eles são todos e eu sou eu –
         finjo, pois, que logro melhorar, finjo acreditar nestes rapazes de boa vontade (oh! os bons sentimentos!), que poderão ajudar-me,
         mas às vezes – muitas – devolvo-lhes o insulto desde as minhas sombras interiores que estes insignificantes médicos jamais poderão conhecer (a profundidade, quanto mais profunda, mais indizível) e insulto-os porque evoco o meu amado velho, o Dr. Pichon R., tão filho da puta como nunca o será nenhum dos insignificantes médicos (tão bons, hélas!) desta sala,
         mas o meu velho morre-me e estes falam e, pior ainda, estes têm corpos jovens, saudáveis (maldita palavra), ao passo que o meu velho agoniza na miséria por não ter sabido ser um merdas prático, por ter enfrentado o terrível mistério que é a destruição de uma alma, por ter metido o nariz no oculto como um pirata – não pouco funesto posto que as moedas de ouro do inconsciente levavam carne de enforcado, e num recinto cheio de espelhos partidos e sal derramado –
         velho duas vezes maldito, espécie de aborto pestífero de fantasmas sifilíticos, como te adoro na tua tortuosidade semelhante somente à minha,
         e é hora de dizer que sempre desconfiei do teu génio (não és genial; és um saqueador e um plagiador) e ao mesmo tempo confiei em ti,
         oh! é a ti que o meu tesouro foi confiado,
         amo-te tanto que mataria todos estes médicos adolescentes para dar-te a beber do seu sangue para que vivesses tu por um minuto ainda, por mais um século,
         (tu, eu, aqueles que a vida não merece)

         Sala 18
         quando penso em terapia ocupacional apetece-me arrancar os olhos numa casa em ruínas e comê-los pensando nos meus anos de escrita contínua,
         15 ou 20 horas escrevendo sem cessar, incitada pelo demónio das analogias, tratando de configurar o meu atroz material verbal errante,
         porque – ó velho belo Sigmund Freud – a ciência psicanalítica esqueceu algures a chave:
         abrir abre-se
         mas como fechar a ferida?

         A alma sofre sem tréguas, sem piedade, e os maus médicos não restauram a ferida que supura.
         O homem está ferido por um golpe que talvez, ou com certeza, foi provocado pela vida que nos dão.
         «Mudar a vida» (Marx)
         «Mudar o nome» (Rimbaud)
         Freud:
         «A pequena A. está embelecida pela desobediência», (Cartas…)
        
         Freud: poeta trágico. Demasiado apaixonado pela poesia clássica. Sem dúvida muitas pistas extraiu dos «filósofos da natureza», dos «românticos alemães» e, sobretudo, do meu amadíssimo Lichtenberg, o genial físico e matemático que escrevia no seu Diário coisas como:
         «Ele dera nomes aos seus dois chinelos»
         Estava um tanto ou quanto sozinho, não é verdade?
         (- Ó Lichtenberg!, pequeno corcunda, eu ter-te-ia amado!)
         E a Kierkegaard
         E a Dostoiévski
         E sobretudo a Kafka
         a quem aconteceu o mesmo que a mim, se bem que ele era pudico e casto – «Que fiz do dom do sexo?» - e eu sou uma puta como não existe outra;
         mas aconteceu-lhe (a Kafka) o mesmo que a mim:
         separou-se
         foi demasiado longe na sua solidão
         e soube – teve de saber –
         que dali não se regressa
                  
         afastou-se – afastei-me –
         não por desprezo (claro está que o nosso orgulho é infernal)
         mas porque uma pessoa é estrangeira
         uma pessoa é de outra parte,
         eles casam-se,
         procriam,
         veraneiam,
         têm horários,
         não se assustam com a tenebrosa
         ambiguidade da linguagem
         (Não é o mesmo dizer Boa noite que dizer Boa noite)
        
A linguagem
         - eu não aguento mais,
         alma minha, pequena inexistente,
         decide-te;
         ou apostas ou desistes,
         mas não me toques assim,
         com pavor, com confusão,
         ou partes ou apostas,
         eu, pela minha parte, não aguento mais.




Texto escrito durante a estadia da autora no Hospital Pirovano para doentes mentais. Incluído no conjunto intitulado «Textos de Sombra», encontrado após a morte da autora e que incluía oito manuscritos inéditos.