Ainda
te lembras, avó, da patrulha das garças boieiras nos campos repisados pelas
vacas, de como a chuva caía nas planícies e o cheiro da terra entrava por ti
adentro até aos ossos? Ainda te lembras do coração da terra que era de lume
mesmo quando chovia a palpitar nos braços dos homens e das mulheres que
semeavam os campos, das raparigas como tu que esvaziavam os cestos e faziam
tudo de novo sempre outra vez? Lembras-te, avó? Foste tu que mo disseste. Contaste
dos trabalhos que passaste só porque lias às escondidas com a lanterna do teu
pai por debaixo dos lençóis, quando o silêncio alastrava na casa e era como um
cancro de luz, e de como te custava suster os braços porque o corpo ficava
dormente do muito trabalho e da muita correria para um quase nada e da muita
fome. Lembras-te de como eu ficava alegre de haver em mim um pouco da rapariga
que tu eras e que lia apesar disso tudo, dos campos das lavras das gentes, de
como eu gostava de saber por ti um pouco de mim?
Agora
eu já não sei, avó, se é belo ou inútil que os campos sejam áridos e débeis
como antes, não sei se tenho forças para ser tu apesar disso tudo, dos campos
das lavras das gentes, não sei se é belo ou se é triste ser tu sendo eu. Mas
ficaram as águas dos rios da cidade grande, que de bom tinha apenas, dizia o
pai e eu acreditava e hoje já não acredito, a placa que dizia Évora, e o pai
nunca dizia Évora dizia casa e dizia lugar aonde a gente pertence mesmo quando
se sente mal, quando há ondas de uma impressão azeda qualquer a crescer dentro
da gente. O pai às vezes falava assim, o pai às vezes falava muito e depois permanecia
calado devagar e depois dizia coisas assim, em frases grandes e soltas, quando
havia muita gente na casa sentada em cadeiras de plástico branco amarelecido
pelo sol por sobre o cimento do chão do quintal, e havia muito sol no quintal, e
era dia de cantarmos sentados à mesa pejada de paios, painhos, chouriços de
sangue, alheiras, farinheiras, queijos em salgadura, tintos e trinaranjos e
coca-colas, olha qu’essa bodega tem-te mal, e pão de muita farinha muito gabado
por todos porque durava tanto que só escassas vezes se deitava fora e nunca sem
antes um beijo, filhinho, porque é triste despedirmo-nos do fruto do cereal do
trabalho da terra, e por isso dizias beijemos o pão, filhinho, e eu beijava mas
como se fosse uma coisa de se ter vergonha, como se beijasse uma rapariga no meio
da feira no Rossio e como se essa rapariga fosse a Joana e eu tivesse os olhos
todos da cidade suspensos em mim a medir os avanços e recuos das línguas e das
mãos e dos braços e das línguas outra vez, e tudo isto ainda redobradamente
difícil porque eu nos bicos dos pés pois um rapaz não pode ser mais baixo do
que uma rapariga, pelo menos não no meio da feira no meio de muita muita gente
vigilante como as moscas, na cama sim onde somos todos gigantes, era assim que
o tio Luís falava, e tu rias à mesa avó, e era assim que eu beijava o pão, como
se fosse no meio de muita gente uma rapariga que eu beijava.
E
o pai cantava connosco mas só até certa hora, depois deixava-se ficar a um
canto a olhar, a olhar muito para ver tudo ao mesmo tempo, e ficava calado
devagar e depois de um longo silêncio dizia frases como esta terra cresce e é
dentro dos pulsos e é dentro dos olhos dos meus amigos, e às vezes olhava para
mim e eu via-lhe os olhos cobertos por uma folha de água embaciada, e ele
olhava para mim e tocava-me, o pai às vezes tocava-me nos ombros ou detinha a
mão trémula de vinhaça no meu cabelo e dizia olha, estes são os teus amigos, e
amigos era uma palavra que crescia dentro de mim muito devagar, uma palavra que
se aninhava que se aranhava dentro de mim tão devagar quanto o calar-se do pai
onde ele ou eu depúnhamos às vezes palavras assim. E eu ficava calado devagar,
a contar os amigos, um a um, a repetir os seus nomes caladamente para mim, a
avó e os tios e as tias e os primos e as primas e as irmãs e o Rendeiro que era
da cidade grande e vestia roupa cara e comia e ria e cantava como a gente, e o
Pardal que às vezes vinha atrasado porque tinha ido à prisão visitar o filho e
que chegava e assobiava uma melopeia alegre e não lhe calhava nada bem o nome
pois parecia uma rola, era como se tivesse uma rola dentro da boca assobiante
quando vinha de ver o filho, e o Senhor João que ó se o era e que eu gostava de
ouvir porque dizia as palavras muito devagar e olhava muito para dentro dos
olhos da gente e às vezes chorava a cantar. Havia outra frase dessas que o pai
dizia e que não me esquece, uma frase que dizia assim, são tão difíceis de
morrer, os amigos, tão difíceis como o teu avô, como o teu tio, como o Rendeiro,
como os que se calam, como os que eu calo porque o trabalho e porque a vida e porque
a morte.
Eu
agora já não sei esquecer que a morte, e não sei se é a morte dos livros se é
de ti ou a do André de madrugada na estrada nacional ou se são todas as mortes juntas.
E já não sei se é belo ou se é triste ser tu, já não sei se a tua planície
patrulhada pelas garças ainda existe nesta terra mapeada por homens em
gabinetes de mapear o país a partir do ponto tal. Mas olha, ficaram para mim as
águas dos rios da cidade grande como uma gigantesca planície de distintos
ofícios de gente semelhante à gente, gente que lavrava as águas, esvaziava os
cestos, descarregava os bois das paciências jogadas com a morte. Ficou a cal
nos pulmões. E essa estúpida mania de lamber as paredes para secar as aftas,
como tu dizias que fizesse, e eu ainda te sei a fazer a cal em grandes latas em
grandes bidões, e dizias e repetias sempre então é assim, estas são pedras de
cal, metemo-las lá dentro e juntamos a água e depois esperamos sem respirar esta
poeira malina que a água de cal tem, e eu fazia tudo muito devagar para não
correr o risco de falhar, para ser tudo como tu dizias que seria, e punha a
lata da cal à sombra, debaixo da laranjeira ao lado do poço e ia ver todos os
dias a formar-se a pasta, eu fazia tudo como tu dizias para que as tuas
palavras não fossem palavras de mentir, avó, para que não se separassem dos
outros ruídos verdadeiros que havia inteiros por sobre a terra, os ruídos das
andorinhas no quintal e dos corvos nos postes do bairro do Frei Aleixo, dos
cantares que o tio Tomané me oferecia em minúsculas gaiolas de grilos acompanhados
pela chuva, e do baque seco das pressões de ar com o André no quintal, e ele
deixava-me sempre ficar com a que tinha a mira direita e ele dizer-me toma que com
esta não falhas era um ruído tão verdadeiro como as tuas palavras que eu perfilhava
porque eram da terra como aquelas coisas todas.
Mas
há tanta coisa que eu já não sei fazer como tu dizias, avó. Olha, já não sei
ser imprudente. Falar tudo de uma vez para não ficar com a cabeça cheia de fantasmas
e a barriga abafada por um nó de muita gente a que não devia guardar rancor,
porque a gente um dia está de abalada, filhinho, e depois de abalada só as
coisas boas ficam por dar. Eu já não sei, avó, se as coisas boas são o
contrário das coisas más. Já não sei ser intransigente na alegria e na paz,
porque já não sei o que é ter os políticos sempre emudecidos pelo comando da
televisão da tua cozinha e acredito que há no avesso de tudo um avesso e saber
estas coisas faz-nos mal e faz-nos bem e faz-nos mal. E eu já não sei ser como
a gente, e agora sou só este silêncio todo mesmo que saiba que este silêncio é
só silenciamento e não um silêncio silêncio como deve ser um silêncio bom, como
era o silêncio da gente. Sou este silêncio que nem sequer é perdão, mas sim um
arranjo de nervos de culpa de remorso de um lamento incontinente porque os dias
passam, avó, e continuam a ser uma notícia escusada, uma notícia inutilmente
prolongada.
Não
sei se sabes, mas enquanto morrias no país no país no país no país. E hoje anda-se
para aqui encalhado e não há um país mas uma europa de mercadorias e mercados
de dívidas e saldos e peneiras e de orçamentos de um cansaço de uma vida que afinal
não nos deve nada, uma vida em que o próprio amor ocupa apenas a coluna das
despesas e em que o tempo é um investimento sem retorno. Não sei se sabes, avó,
mas os papéis do futuro estão selados por um funcionário cego e estamos todos à
espera em repartições para cujos partidores o mundo é uma sociedade anónima a
inserir os dados nos ficheiros apagados da memória porque o passado é assim uma
espécie de processo arquivado e o presente está apoiado sobre um corpo que
respira a prestações incertas apostando as últimas coroas nesta vida que garantimos
juramos ser a nossa porque a gastámos a pronto.
E
hoje as paredes já não sabem a açúcar amarelo, avó, já não sabem ao que sabiam quando
estavam pintadas de cal. Hoje as paredes já não sabem a nada. Quando íamos à
praça do Giraldo, lembras-te?, no Verão, para ver as bandas, e encontrávamos lá
muita gente, amigos e conhecidos que nunca eram só conhecidos mas pessoas
pessoas, quando íamos à praça do Giraldo e era Verão e eu ficava a pensar e a
entender e admitia que tinhas razão quando dizias que a praça levava aquele nome
porque era ali que a gente geralmente se encontrava, quando íamos à praça para
ver os concertos que havia no Verão, as paredes das casas e das lojas sabiam às
vezes a palavras que eu não entendia mesmo que ficasse a lê-las calado devagar.
Hoje as paredes já não dizem nada. E até nos campos o cheiro do pêlo das vacas
molhadas pela chuva, o cheiro da lama bicada pelas garças é diferente. Agora
tudo está diferente. E eu já não sei se é triste se é belo ser igual à gente
que é igual à gente.
Não
sei se sabes, avó, mas à noite, quando leio, penso que é a tua voz que pensa
dentro da minha cabeça certas palavras. Palavras como pão, como beijo, como
açúcar. Palavras como cal. E quando volto à cidade, quando passo pelo bairro,
digo casa e digo lugar aonde a gente pertence mesmo que. Mas tu morreste. E
agora as paredes estão cheias de palavras que não dizem nada. E o país o país o
país já não me pode fazer mal.