E, no entanto, o encontro erótico é fugaz. A sua
insuficiência resulta da criação de um sistema de tabus, na acepção de Rivière, associados ao universo
feminino, que o mitifica e sacraliza, tornando-o objecto de um desejo
inalcançável, fazendo deste uma figura de uma ausência elemental, de um perigo
alienatório. É onde Alberto se descobre o «absurdo de uma comunicação» (Estrela Polar). Num universo
fundamentalmente masculino, o feminino (a possível
ligação) transforma-se em alteridade
radical, em realidade sempre fugidia. A fugacidade da revelação do excesso
sagrado do feminino não resiste à «incrível redução da pessoa a um objecto» (Estrela Polar). É que «o cansaço
aconteceu, um indizível desencanto (…) Há um instante na minha memória, em que
todo o mistério de Aida se desvanece. Estremece de alvura todo o seu corpo na
sombra, mas é apenas um corpo. Instantâneo, limitado, avulso» (Estrela Polar).
Assim, conforme observa Hélder Godinho, «a Presença
degrada-se sempre que “desce” à terra». A comunhão perfeita não é mais do que
«um mito da nossa pobre solidão» (Estrela
Polar). Esse fracasso relaciona-se, em grande medida, com a relação
conflitual que se estabelece com o feminino, em particular ao nível da relação
sexual/sensual, na qual o perigo de
engolimento do eu pelo outro se agudiza, segundo uma concepção da relação
amorosa como antropofagia, vocação a um tempo gregária e assassina. A mulher
surge como a vagina dentada a que se
refere Eliade, o amor está «travado de dentes em todo o corpo» (Estrela Polar). Manifesta-se, assim, o
erotismo como espaço do interdito.
Ecoa aqui sem dúvida Bataille, pois a incapacidade de ligação
à alteridade impossibilita, por conseguinte, aquilo a que o autor chama «o
crescimento do conjunto e a dádiva dos indivíduos». A obsessão individualizante
incapacita a realização amorosa, a ligação, configurando pelo contrário a
oportunidade para o engolimento, para o fusional prisional e não libertador,
demonstrando que «o sentido último do erotismo é a morte» (Bataille). O
erotismo, associado assim freudianamente a uma tanatologia, transforma-se por
essa via num «acto de violência que fala a voz do domínio, da destruição» (Invocação ao Meu Corpo).
O que poderia ter sido uma e-volução, um percurso para a ek-sistência, transforma-se em in-volução, em in-sistência, submersão do eu em si, na radicalização da alteridade
do outro. A emergência do egotismo - «Se eu nunca a amei a ela nem a ninguém,
se não amo senão a mim» (Estrela Polar)
– agudiza portanto o problema da incomunicabilidade. O aparicional do instante
amoroso revela-se pois na sua insuficiência de teor apocalíptico - «Como aceder
aos outros? Cai a noite a toda a pressa, é tão duro estar só» (Estrela Polar) – e alucinatório -
«Estamos sós connosco mesmos, perdidos na nossa loucura, no termo da nossa
busca» (Estrela Polar), recordando
que «a comunhão perfeita não existe» (Estrela
Polar), que, conforme Pascal, se morre sempre sozinho.
Revela-se por esta via a persistência do romance como género do desencanto (Lukács), abrindo
caminho para o crime. Porque o instante da plenitude amorosa é um «ápice
infinito de quem parou de respirar (…) uma infinitesimal vibração» (Estrela Polar), o desejo de fixação de
dito instante preconiza o crime como potencialidade, a morte (o homicídio) como
cristalização da plenitude da vida: «Acaso a morte é a comunhão mais perfeita?»
(Estrela Polar). Perante a evidência
de que a propriedade sagrante do feminino se dissipa com demasiada celeridade,
de que «quem dormia comigo era alguém que eu aborrecera, que se me gastara» (Estrela Polar)
Tânatos aloja-se de novo em Eros, a violência impõe-se com o fim de anular a
face real do feminino que devém da sua temporalidade eliminatória do absoluto
que a suspensão infinitesimal do encontro erótico contivera: «Fito Alda
violentamente, para lhe reduzir a presença ao seu limite. Tento
materializar-lhe (…) tudo o que nela é significado» (Estrela Polar).
O crime deriva assim do desejo de que «a morte te abra a
grandeza da vida, ta ensine» (Estrela Polar),
anulando a insuficiência do feminino desejado. Porque o amor é uma «fugidia
verdade, estrela polar incerta, verdade instável» (Estrela Polar), a morte é um apelo de fixação do instantâneo de
plenitude aparicional: «Que eu morra agora (…) nesta hora lúcida sem passado
nem futuro, nítida» (Estrela Polar). Matar
a mulher «para a ter enfim a seu lado na comunhão indestrutível» (Estrela Polar) é pois a derradeira
decisão existencial de um condenado, a última oportunidade para afirmar a sua
própria liberdade decisora, a potencial expiação de um outro crime, do crime de
morrer-se e de a vida ser insuficiente na sua impostura quotidiana: «Um crime
era pois um acto, uma superação, um
triunfo?».
Retomando assim o absurdo da finitude como núcleo
problematizante do romance, a condenação à prisão, agudizando definitivamente a
solidão existencial do protagonista/narrador, configura o espaço da escrita
como derradeiro crime compensatório, pela emergência do projecto
memorial/circular contra a linearidade teleológica de um tempo que a narrativa
pretende anular, fazendo eco dessa «misteriosa necessidade de tentar atingir o
inatingível, o recomeçar sempre como se começasse, o persistir numa luta que
jamais se ganhará» (Conta-Corrente III),
«Escrever constantemente, recomeçar constantemente é reinventar em nós uma nova
Primavera; reinventar a alegria do início (…); recusar obstinadamente a certeza
da morte» (Conta-Corrente-IV).
A circularidade do romance, com a predição de um futuro que
continuamente reincide na narrativa do romance e a repete infinitamente,
concretizando aquele terceiro tempo, transcendente, esférico, de Parrett, traça-se pela ilusão útil da escrita como
fuga à pena capital, à pena de morte a que todo o humano está condenado por
condição da sua temporalidade linear, que sempre, fatalmente, desagua na morte.
A literatura visa assim a permanência de algo que «participe de mim e seja eu
para lá da morte e me testifique e recupere, me seja vida depois eu a não ser,
me invente imortal na minha absoluta e inexorável finitude» (Estrela Polar).
Aderindo assim ao ser-contra-a-morte de Malraux, valorizando
a arte como anti-destino, Estrela Polar
tematiza a potencialidade salvífica da escrita como fixação do aparicional:
«Ah, escrever um romance que se fixasse nessa iluminação viva de nós, nessa
dimensão ofuscante do halo divino de nós» (Estrela
Polar). Partilhando daquela fenomenologia
do redondo de Bachelard, a circularidade que o final do romance sugere
institui o próprio texto como crime derradeiro, compensatório do castigo a que
todo o homem está votado apenas por existir. A desejada infinitude encontra no
espaço do texto o potencial fragmentário da resistência à estagnação numa ordem
linear e acabada: «A obra de arte inacabada (…) Mais do que nunca isso nos
fascina. O fragmento ou o inacabado acentua a voz do imaginário, antes de ser a
do perfeito silêncio» (Pensar). No
que o projecto erótico fracassara poderá a literatura, enfim, vingar. Contra um
castigo para cuja justificação não há culpados, escrever será talvez o último
dos crimes perfeitos.
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