A leitura da poesia reunida de Manuel
António Pina confirma o conjunto de problemáticas em torno
das quais a sua obra se sustenta, relatadas a uma preocupação auto-reflexiva
que privilegia o questionamento do dilema da identidade: “Eu sou talvez aquilo
que me falta”. A convivência com a experiência ironizada do eu desenha-se a
partir de uma série de dualidades (eu/outro, presente/passado, poesia/prosa)
que concretiza o pressentimento de uma descoincidência entre realidade e ilusão.
Partindo, por exemplo, da hipótese quântica da existência de universos
paralelos - “Determinei,
pois, dois lados: um, admitamos, Real; outro Virtual” – recupera-se um registo
com uma vocação amiúde surrealizante e desconstrutiva que dá conta de uma
dissidência entre concreto e projectivo - “Entretanto
dobrar-se-ia o mundo / (o teu mundo: o teu destino, a tua idade) / entre ser e
possibilidade” - que instala a interrogação acerca da possibilidade cognoscente do
indivíduo e do sentido para a existência, para isto. Partícipe fulcral
da dualidade que assinala a existência, é o próprio eu quem concretiza de forma
mais radical o problema da descoincidência realidade-ilusão que arvora na
dissidência dele a si mesmo: “Agora
quem sente / isto fora de mim, / quem é este Ausente?”; “Um intruso grita /
dentro de mim, oiço-o no coração”; “Alguma coisa fora de mim / está escondida
em mim / como um coração exterior”.
O indivíduo reconhece assim a
possibilidade de que “talvez tudo exista exilado / de alguma verdadeira
existência”. Esse exílio aparece como uma condição decorrente da interposição
de um transcendental (a própria linguagem) entre o eu e o mundo, que
inviabiliza o acesso daquele a este, na medida em que se descobre falsificado, mediado ele próprio pela
malha referencial da linguagem que o circunscreve e que não comunica com a
verdade: “Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois. / E entre mim eu,
isto é, palavras”. Assim, a linguagem, o conjunto de sentidos que dela em cada
indivíduo se desprende, limita a possibilidade percepcional do eu, encerrado
como está em si mesmo -“É duro sonhar e ser o sonho, / falar e ser as palavras!” - numa
inversão da lógica discursiva que faz do próprio sujeito um enunciado: “aquele que escreve / é também eternamente escrito”. Uma totalização da
mediação linguística do acesso do eu à realidade, como grelha interpretativa
irredutível ao todo - “O que é
feito de nós senão / as palavras que nos fazem?” – lança o indivíduo num
universo omisso, de silenciamentos, de ausência de um cenário significativo: “As palavras esmagam-se
entre o silêncio / que as cerca e o silêncio que transportam”. Desse modo se
agudiza a impossibilidade de uma apropriação da realidade por parte de um
sujeito que apenas a entrevê como um dado
exterior: “eu sou o lugar onde tudo isto se passa fora de mim”. Encerrado como
está no ciclo da sua própria
consciência limitada, obsessivamente revisitada - “eternamente regressamos / ao
sítio de onde nunca saímos” – a realidade transporta o signo de uma absoluta
alteridade - “A realidade é uma hipótese repugnante, / fora de mim, entrando
por mim a dentro, / solidão errante / órfã de centro”, - despojada de uma
substância concreta, pois o eu está submerso no conjunto de significados que radicalmente o perfazem: “Volto, pois, a
casa. Mas a casa, / a existência, não são coisas que li? / E o que encontrarei
/ se não o que deixo: palavras?”.
A emergência da ficcionalidade latente
em cada eu, quando consciencializada – e esse é o lado mais trágico da poesia do autor -, reduz o
seu horizonte projectivo, limita nele a sua telicidade: “eis o que há: a falta
de alguma coisa”. O sujeito, descobrindo-se desprovido de finalidade, orienta o
seu olhar para uma memória ironizada por um certo laivo crítico, objectivante,
que retoma a descoberta do grão de areia da consciência que obstrui o ingénuo mecanismo
do optimismo. Também na memória habita apenas a pessoa ausente, aquele eu que
já não sou e que invento ao lembrá-lo. O carácter fictício invade também este
espaço - “Literatura.
Tornámo-nos, tu e eu, e também aquelas terríveis quatro horas da tarde,
literatura. Em que outro lugar, em que outra morte, poderíamos nós ter
encontrado refúgio?”. Presente, passado e futuro comprovam desse modo a
incompletude do projecto de literalidade que o sujeito se prometera: “Vai pois, poema, procura / a voz
literal / que desocultamente fala / sob tanta literatura.” Incapaz de
pronunciar a coisa tal como ela é, a
palavra é tão somente lateral - “(…)
fez-se tarde / no que pode ser dito. Onde estavas / quando chamei por ti, literalidade?”
-, ela que é a última morada do eu, esperança derradeira também defraudada: “Nunca
estive tão longe e tão perto de tudo. / Só me faltavas tu para me faltar tudo”.
O mundo converte-se assim em lugar de
algum modo inóspito, em que o sujeito não pode fixar um espaço topofílico, um
espaço de familiaridade, imerso como está no problema da sua ausência de
personalidade: “As pessoas têm a sua casa e a sua doença / Mas a casa da pessoa
é a sua doença”. Viver transforma-se na procura de dito espaço, da supressão do
desamparo existencial por alguém incapaz de cumprir a maturidade num presente
que o aliena, prisioneiro ainda do conforto da casa familiar, da casa das
origens: “Os homens temem as longas viagens, / os ladrões da estrada, as
hospedarias, / e temem morrer em frios leitos / e ter sepultura em terra
estranha. // Por isso os seus passos os levam / de regresso a casa, às veredas
da infância, / ao velho portão em ruínas, à poeira / das primeiras, das únicas
lágrimas”. O desejo de “dormir um sono sem olhos / e sem escuridão, sob um
telhado por fim”, de encontrar “um sítio onde pousar a cabeça”, falha onde
falha até mesmo a literatura. Os livros, "coisa
hipócrita e escura", compõem-se das mesmas palavras que compõem o sujeito,
que lhe negam o acesso ao real (a haver um):
“As palavras (…) insubstanciais seres, incapazes também eles de
compreender, / falando desamparadamente diante do mundo”.
No entanto, “é à sua volta / que se
articula, balbuciante, / o enigma do mundo”. Na verdade, por todos os lados
cercado por elas, o poeta sabe ainda que “Já não é possível dizer mais nada /
mas também não é possível ficar calado.” E redescobre finalmente a satisfação
do próprio processo, do estar a caminho
onde estar e ser se confundem. Talvez a essência do homem não seja mais do que
esse ser o caminho, o existir em
função de uma ausência que lança o eu na vertigem da vida: “O braço que falta
ao mendigo é que o sustenta”. E talvez por isso seja necessário preservar a
impossibilidade de chegar ao fim, pois “se encontraste o que procuravas /
perdeste-o e não começou ainda a tua procura”. Em certas zonas do caminho
fulgurarão os instantes revelacionais em que de súbito o eu se descobre às
portas de si mesmo: “E todavia em certos dias materiais / quase posso tocar os
meus sentidos, / tão perto estou, e morrer nos meus sentidos”. É onde se aventa
um balanço final para isto: “É um
mundo pequeno, / habitado por animais pequenos / - a dúvida, a possibilidade da
morte - / e iluminado pela luz hesitante de // pequenos astros – o rumor dos
livros, / os teus passos subindo as escadas, / o gato perseguindo pela sala / o
último raio de sol da tarde”. Esses pequenos
astros são ainda um sentido. Na
poesia de Manuel António Pina é sempre tarde demais para o sentido. Mas ser tarde é ainda um modo de se ter tentado. E
triunfar do impossível talvez seja ter andado por aqui somente, como ele andou,
a tentar.
Sem comentários:
Enviar um comentário