sábado, 6 de setembro de 2014

Sala de Psicopatologia (1971)



Ao cabo de anos na Europa.
         Isto é, Paris, Saint-Tropez, Cap
         St. Pierre, Provença, Florença, Siena,
         Roma, Capri, Ischia, São Sebastião,
         Santillana del Mar, Marbella,
         Segovia, Ávila, Santiago,
                            e tanto
                            e tanto
                            para não falar de Nova Iorque e de West Village com rastos de raparigas estranguladas
                            - quero que um negro me estrangule – disse
                            - o que queres é que te viole – disse (ó Sigmund, contigo acabaram-se os homens do mercado matrimonial que frequentei nas melhores praias da Europa)
         e porque sou tão inteligente que já não sirvo para nada,
         e porque tenho sonhado tanto que já não sou deste mundo,
         aqui estou, entre as inocentes almas da sala 18,
         persuadindo-me dia após dia
         de que a sala, as almas puras e eu temos um sentido, temos um destino,
         - uma senhora originária do mais obscuro bairro de uma aldeia que não figura no mapa diz:
         - O doutor disse-me que tenho problemas. Eu não sei. Eu tenho alguma coisa aqui (toca nas mamas) e uma vontade de chorar que mamma mia.
         Nietzsche: «Esta noite terei uma mãe ou deixarei de ser.»
         Strindberg: «O sol, mãe, o sol.»
         P. Éluard: «É preciso bater na mãe enquanto é jovem.»
         Sim, senhora, a mãe é um animal carnívoro que ama a vegetação luxuriosa. No momento em que a pariu abre as pernas, ignorante do sentido da sua posição destinada a dar à luz, à terra, ao fogo, ao ar,
         mas depois uma pessoa quer voltar a entrar nessa maldita vulva,
         depois de ter tentado nascer por mim mesma extraindo a minha cabeça pelo meu útero
         (e como não consegui, procuro morrer e entrar no pestilento refúgio da oculta ocultadora cuja função é ocultar)
         falo da vulva e falo da morte,
         tudo é vulva, eu já lambi vulvas em vários países e tudo o que senti foi orgulho pelo meu virtuosismo – a Mahatma Gandhi do linguajar, a Einstein do minete, a Reich da lambidela, a Reik de abrir caminho entre pêlos como os de sujos rabinos – oh! o gozo da ronha!
         Vós, os insignificantes médicos da 18 são ternos e até beijam o leproso, mas
         casar-se-iam com o leproso?
         Um instante de imersão no baixo e no obscuro,
         sim, disso são capazes,
         mas logo vem a vozinha que acompanha os jovenzinhos como vós:
         - Poderias fazer de tudo isto uma piada, não é verdade?
         E
         sim,
         aqui no Pirovano
         há almas que NÃO SABEM
         por que motivo receberam a visita das desgraças.
         Pretendem explicações lógicas os pobres pobrezinhos, querem que a sala – verdadeira pocilga – esteja muito asseada, porque a ronha causa-lhes horror, e a desordem, e a solidão dos dias vazios habitados por antigos fantasmas emigrantes das maravilhosas e ilícitas paixões da infância.
         Oh! beijei já tantas betinhas para dar por mim de repente numa sala cheia de carne de prisão onde as mulheres vêm e vão falando das melhoras!
         Mas
         curar o quê?
         E começar a curar por onde?
         É verdade que a psicoterapia na sua forma exclusivamente verbal é quase tão bela como o suicídio.
         Fala-se
         Mobila-se o cenário vazio do silêncio.
         Ou, se há silêncio, este transforma-se na mensagem.
         - Porque está calada? Em que pensa?
         Não penso, pelo menos não executo o que chamam pensar. Assisto ao inesgotável fluir do murmúrio. Às vezes – quase sempre – estou húmida. Sou uma cabra, apesar de Hegel. Fosse eu um tipo com uma betinha assim e comia-me e ela levava com ele até que acabasse a ver curandeiros (que sem dúvida mo chupariam) a fim de que me exorcizem e me procurem uma boa frigidez.
         Húmida
         Vulva do coração de criatura humana,
         coração que é um pequeno bebé inconsolável,
         «Como uma criança que mama silenciei a minha alma» (Salmo)
         Ignoro o que faço na sala 18, para além de honrá-la com a minha presença prestigiosa (se minimamente gostassem de mim ajudar-me-iam a anulá-la)
         oh! não é que eu queira flirtar com a morte
         eu quero apenas pôr termo a esta agonia que se torna ridícula à força de prolongar-se,
         (Ridiculamente te adornaram para este mundo – diz uma voz apiedada de mim)
         E
         Que te encontres contigo mesma – disse.
         E eu disse-lhe:
         Para reunir-me com o migo de comigo e ser uma só e a mesma entidade com ele tenho de matar o migo para que assim morra o co e, deste modo, anulados os contrários, a dialéctica supliciante finaliza na fusão dos contrários.
         O suicídio determina
         uma faca sem lâmina
         à qual falta o cabo.
         Então:
         adeus sujeito e objecto,
         tudo se unifica como noutros tempos, no jardim dos contos infantis repleto de regatos de frescas águas pré-natais,
         esse jardim é o centro do mundo, é o lugar do encontro, é o espaço feito tempo e o tempo feito espaço, é o alto momento da fusão e do encontro,
         fora do espaço profano no qual o Bem é sinónimo da evolução das sociedades de consumo,
         e longe dos merdosos simulacros de medir o tempo através de relógios, calendários e outros objectos hostis,
         longe das cidades nas quais se compra e se vende (oh! nesse jardim para a menina que fui, a pálida alucinada nos subúrbios malsãs pelos quais errava pela mão das sombras: menina, minha querida menina que não tiveste mãe (nem pai, é claro)
         De maneira que arrastei o meu rabo até à sala 18,
         na qual finjo acreditar que a minha doença de distância, de separação de absoluta NÃO-ALIANÇA com Eles
         - Eles são todos e eu sou eu –
         finjo, pois, que logro melhorar, finjo acreditar nestes rapazes de boa vontade (oh! os bons sentimentos!), que poderão ajudar-me,
         mas às vezes – muitas – devolvo-lhes o insulto desde as minhas sombras interiores que estes insignificantes médicos jamais poderão conhecer (a profundidade, quanto mais profunda, mais indizível) e insulto-os porque evoco o meu amado velho, o Dr. Pichon R., tão filho da puta como nunca o será nenhum dos insignificantes médicos (tão bons, hélas!) desta sala,
         mas o meu velho morre-me e estes falam e, pior ainda, estes têm corpos jovens, saudáveis (maldita palavra), ao passo que o meu velho agoniza na miséria por não ter sabido ser um merdas prático, por ter enfrentado o terrível mistério que é a destruição de uma alma, por ter metido o nariz no oculto como um pirata – não pouco funesto posto que as moedas de ouro do inconsciente levavam carne de enforcado, e num recinto cheio de espelhos partidos e sal derramado –
         velho duas vezes maldito, espécie de aborto pestífero de fantasmas sifilíticos, como te adoro na tua tortuosidade semelhante somente à minha,
         e é hora de dizer que sempre desconfiei do teu génio (não és genial; és um saqueador e um plagiador) e ao mesmo tempo confiei em ti,
         oh! é a ti que o meu tesouro foi confiado,
         amo-te tanto que mataria todos estes médicos adolescentes para dar-te a beber do seu sangue para que vivesses tu por um minuto ainda, por mais um século,
         (tu, eu, aqueles que a vida não merece)

         Sala 18
         quando penso em terapia ocupacional apetece-me arrancar os olhos numa casa em ruínas e comê-los pensando nos meus anos de escrita contínua,
         15 ou 20 horas escrevendo sem cessar, incitada pelo demónio das analogias, tratando de configurar o meu atroz material verbal errante,
         porque – ó velho belo Sigmund Freud – a ciência psicanalítica esqueceu algures a chave:
         abrir abre-se
         mas como fechar a ferida?

         A alma sofre sem tréguas, sem piedade, e os maus médicos não restauram a ferida que supura.
         O homem está ferido por um golpe que talvez, ou com certeza, foi provocado pela vida que nos dão.
         «Mudar a vida» (Marx)
         «Mudar o nome» (Rimbaud)
         Freud:
         «A pequena A. está embelecida pela desobediência», (Cartas…)
        
         Freud: poeta trágico. Demasiado apaixonado pela poesia clássica. Sem dúvida muitas pistas extraiu dos «filósofos da natureza», dos «românticos alemães» e, sobretudo, do meu amadíssimo Lichtenberg, o genial físico e matemático que escrevia no seu Diário coisas como:
         «Ele dera nomes aos seus dois chinelos»
         Estava um tanto ou quanto sozinho, não é verdade?
         (- Ó Lichtenberg!, pequeno corcunda, eu ter-te-ia amado!)
         E a Kierkegaard
         E a Dostoiévski
         E sobretudo a Kafka
         a quem aconteceu o mesmo que a mim, se bem que ele era pudico e casto – «Que fiz do dom do sexo?» - e eu sou uma puta como não existe outra;
         mas aconteceu-lhe (a Kafka) o mesmo que a mim:
         separou-se
         foi demasiado longe na sua solidão
         e soube – teve de saber –
         que dali não se regressa
                  
         afastou-se – afastei-me –
         não por desprezo (claro está que o nosso orgulho é infernal)
         mas porque uma pessoa é estrangeira
         uma pessoa é de outra parte,
         eles casam-se,
         procriam,
         veraneiam,
         têm horários,
         não se assustam com a tenebrosa
         ambiguidade da linguagem
         (Não é o mesmo dizer Boa noite que dizer Boa noite)
        
A linguagem
         - eu não aguento mais,
         alma minha, pequena inexistente,
         decide-te;
         ou apostas ou desistes,
         mas não me toques assim,
         com pavor, com confusão,
         ou partes ou apostas,
         eu, pela minha parte, não aguento mais.




Texto escrito durante a estadia da autora no Hospital Pirovano para doentes mentais. Incluído no conjunto intitulado «Textos de Sombra», encontrado após a morte da autora e que incluía oito manuscritos inéditos.

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