Fialho de Almeida - Segunda Parte
A noite é um cenário de profundidade (de abismos) e de extensão (de excessos, de exageros), como afirma Fialho: “a noite realiza e dá corpo a todas as formas de exagero (…) ela que desdobra a personalidade para além dos limites do real humano” (Figuras de Destaque); “as ruas são maiores, as casas mais lúgubres, as árvores colossais de desespero” (Vida Irónica). “Uma Lisboa diferente irrompe (…) dos abismos das ruas, dos lagos de sombra das praças, e das crateras extintas dos outeiros”. É sob estes signos que o grotesco nocturno e carnavalesco de Fialho se complexifica, concretizando-se no «disforme e no monstruoso-horrível» que apela a «um mundo desumano do nocturno e abismal», tal como descrito por Kayser, feito de «vapores de delírio», lembrando «um pandemónio humano esfacelado por paixões e inércias mais fortes que as naturais» (Vida Irónica), numa «sarabanda de caricaturas (…) que raras vezes conservam a menor reminiscência do modelo que pretendiam fotografar.»
É neste universo que podem surgir «rondas de gnomos (…) pequenos monstros (…) n’uma dança infectante» (Os Gatos), dança macabra, eles que são os guardiães de tesouros subterrâneos, nas palavras de Victor Hugo. É na procura desses tesouros subterrâneos que surge o mundo abismal, em profundidade, de Fialho de Almeida, através de uma descida aos infernos como processo de autognose, como revisitação dos fantasmas que sitiam o eu, como procura de superação do hiato entre realidade e idealidade. Nesse sentido, o grotesco (que deriva do substantivo italiano grotta - gruta) «abre um abismo, (…) tira o chão de sob os pés», como nos dizia Kayer. E por isso afirmava Fialho que «é extraordinária a epilepsia com que a imaginação (…) larga, das cavernas do medo, o bestiário da alucinação doida e disforme!» (Os Gatos).
O grotesco fialhiano remete assim para a dimensão individual e subjectiva que Bakhtine associa ao grotesco romântico, espécie de “carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a consciência aguda do seu isolamento”, forma de descida do eu a si. O sentido abismal e revelacional da literatura fialhiana contretiza-se, desde Os Gatos, na evidência das condições limitantes da realidade, dos seus impossíveis. A união da duração real com a duração ideal para que Fialho aponta não é tanto exterior como interior. A humanização da experiência grotesca reduz de novo a vivência epifânica do carnaval fialhiano ao lugar instrospectivo. Considerando, com Bakhtine, que «o homem não coincide nunca consigo mesmo», procura a revelação dessa individualidade vivida em plenitude, segundo uma experiência não do coming mas do becoming, tal como descrita por Dentith, o correspondente fialhiano da sartriana impossível coincidência do en soi com o pour soi. Como fórmula de uma vivência da tensão, o carnaval apodera-se, pois, das formas que a realidade lhe fornece para filtrá-las «através de um sofrimento ou de um êxtase» (Vida Irónica), através daquilo a que Fialho chama a hipertrofia do eu. O autor aproxima-se da despersonalização, pela euforia de uma imagem (utopia) que conduz ao estado alucinatório (alienatório).
Interessando-lhe assim «não a paisagem, mas o sonho dela», através duma intuição das profundezas, a transrealidade visada traduz-se «no maravilhoso poder de evocar por trás das formas físicas das coisas, espécies de subentendidos telepáticos, mundos de sombra hamlética» (Saibam Quantos). O delírio, a alucinação, que admira em Shakespeare, Poe ou Goya, fundam essas visões hamléticas que afirmam uma crise de irreal. No horizonte das formas alucinadas é possível «viver sem forma o anonimato das forças naturais, morrer sem dor, dando vida incessante às coisas inconscientes, não ser um, mas ser, e circular e bater no coração de tudo o que é criado…» (Os Gatos) Através dum desejo de mergulhar nas coisas, associado à despersonalização que faz do carnaval uma força fusional ao encontro de um desejo de plenitude, que ilimita o ser, Fialho pode afirmar que «estamos numa época de máscaras» (Vida Errante), que consubstancia uma evidência do oculto ou lunar da alma humana.
Mergulhado na transrealidade, o artista abdica da própria vida, das ligações que o sujeitariam à realidade. A loucura, como limite último dessa separação do eu a si, é o seu destino, na procura de um sentido fora da realidade que o não tem. Cingido em dois, ele é constituído pelo seu próprio outro, pela multiplicação de eus que o habitam e pulverizam. A admiração que Fialho sentiu pela figura do actor prende-se com essa capacidade de despersonalização, de desdobramento num outro. O actor, «escultor de si próprio» (Os Gatos), representa a performance de uma determinada abstracção poética que passa pela necessidade desse desdobramento. A despersonalização, o outrar-se, gera uma ruptura do eu a si que o configura como espaço para a loucura. Há uma «coexistência de duas pessoas dentro da mesma». Esse outro interior é «alguém que me faz guerra, uma guerra horrorosa que me obriga a fugir-me, a desertar de mim mesmo.» Porque «eu é que sou talvez duplo» (Os Gatos), dá-se, no escritor, um processo de auto-objectivação, tal como interpretado por Bakhtine, «a possibilidade de uma atitude dialógica em relação à minha própria pessoa». Esse outrar-se, que precede Pessoa, associa-se em Fialho a uma experiência da loucura como experiência de alienação: «Fujo de casa (…) e correndo pelas ruas, a minha cabeça tresvaira, e parece-me que não sou eu que vou, mas a cidade que se desvia de mim como dum doido.» (Os Gatos).
O louco, que se liga à noção romântica de génio, de acordo com Lombroso ou Max Nordeau, convive com o escritor, agente de uma experiência da esquizofrenia, através da subjectivação da realidade para o nível da interioridade, fundando a disrupção patética que febriliza o mundo, gerando o seu avesso. Esta, que é uma experiência egográfica, configura uma cisão do eu racional/real ao seu ideal/artístico. Se o primeiro procura amarrar o eu à realidade, o segundo procura libertar o seu outro, aquilo que desfigura o real e que dá forma aos espectros da sua interioridade que emerge, pela literatura, à superfície. O artista é um “visionista de mundo” (Vida Irónica) que perfilha o acesso à transcendência, a um certo grau de superhumanidade. A literatura é uma prática visionária, profundamente criadora, que permite encontrar ainda, libertando-se dum crânio, «um enxame de borboletas» (Os Gatos).
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