Quando começou a traduzir, com vinte
anos, José Bento, o mais jovem colaborador da Árvore, tinha já publicado poesia. A tradução era como um exercício
de escrita. “Estive em Espanha, onde frequentei cursos de língua e de literatura
espanholas na Complutense e em Baeza. A tradução é um modo de ler e, lendo
outros autores desse modo atento que a tradução exige, só se um tipo for muito
burro é que não aprende. A melhor forma de aprender a escrever é ler coisas
boas”. Sobre o modo como as suas traduções influenciariam a sua poesia, afirma:
“não me parece que tenha muitas influências”; embora, após uma pausa, corrija:
“a gente tem sempre, embora diga que não para nos armarmos em bons. Não há
ninguém que não tenha mestres”. Entre os processos de criação e de tradução,
que é também um modo muito significativo de criação, há naturais intersecções.
José Bento não tem dúvidas: “aprende muito menos o poeta com o tradutor do que
o tradutor com o poeta. Alguém que não domine profundamente a sua língua não pode
ser um bom tradutor”. Essa é justamente a qualidade que afirma distinguir a
excelente tradução da tradução mediana: “O problema maior da tradução nunca foi
conhecer a língua de que traduzimos mas sim conhecer a língua para a qual
traduzimos”. Eis, porventura, a razão pela qual os poetas são sobretudo traduzidos
por outros poetas. José Bento concorda, mas, “apesar disso, temos alguns bons
tradutores que não são poetas, como o Paulo Quintela, embora muitas vezes seja
acusado precisamente de resvalar para um certo prosaísmo”.
Consente em que há no processo da
tradução uma grande dose de intuição, uma dada sensibilidade mais ou menos
espontânea para a língua, e certos momentos em que o tradutor se vê confrontado
com a necessidade de decidir entre realizar uma aproximação àquilo que poderá
interessar ao leitor ou àquilo que poderá interessar ao original. Em ditos
momentos, José Bento afirma que “o objectivo é sempre fazer com que a tradução
seja um texto significativo na literatura e na língua portuguesas. Entre o
espírito e a letra prefiro manter o espírito, creio. Além disso, entre espanhol
e português, e apesar de todas as diferenças, há uma notória proximidade que
permite justamente conseguir quase sempre um equilíbrio entre ambas as partes,
leitor actual e texto original”.
Quando lhe pergunto que tradução ou
traduções se seguem prefere um balanço: “chega uma altura em que um tipo já
traduziu tanto que aquilo se transforma numa espécie de hábito”. Digo-lhe que
tal não é necessariamente negativo. Sorri e responde: “dá prazer mas não leva a
nada. A tradução tornou-se já uma espécie de fazer pelo prazer do processo em
si”. Um pouco como a poesia, acrescento eu, ao que ele acede: “sim, outra
inutilidade”.
Retomamos assim o tema das intersecções
entre traduzir e escrever. Leio-lhe dois versos do seu último livro de
originais (Quando escreves com uma
das mãos prendes / o papel, que a outra vai lavrando, / semeando a palavra e a turbação/ no
impulso que excede / a força que as
unifica e as separa) e noto que haverá porventura em ditos versos a evidência
de uma escrita a duas mãos que apenas a experiência da tradução possibilita.
“Por outro lado – afirma -, sinto muitas vezes que o exercício
constante da tradução limita a produção de originais. Não é uma questão de
cansaço, é uma questão de tornar-se evidente para mim mesmo que há tópicos,
temas, coisas já escritas às quais não vou acrescentar nada”. Mas logo abandona
o tom de postulação mais especulativa: “No fundo, não sei. Sou muito emotivo, guio-me
mais por sentimentos do que por ideias, pelo que sou o pior juiz de mim mesmo”.
Peço-lhe que me indique o poeta que
mais lhe interessa e à sua poesia: “o poeta que mais me ensinou foi Antonio
Machado, embora não me pareça que na minha poesia se note a sua presença”.
Digo-lhe que a presença espanhola na sua poesia se dá onde esta denota uma
tendência para um prosaísmo contido por uma forte coesão métrica. Concorda,
acrescentando que não gosta de poesia “com berloques, com muitos enfeites,
muitas pilinhas”, tipo que afirma existir bastante em Portugal nas últimas três
décadas. “Não gosto de poesia difícil, gosto de uma poesia que um leitor
habituado a ler entenda”. Questionado sobre a mais recente poesia ibérica, José
Bento afirma ter-se desligado um pouco do que publicam os novos. Não obstante, sublinha que “há ainda bons poetas vivos, e
se houvesse um apenas já salvaria a nação”. Por outro lado, abundam, é certo,
“os poetas que não têm sequer a décima parte da qualidade que cuidam ter”. Essa
é, aliás, “uma prova da existência de Deus. O pensarem todos os poetas que são
bons, havia alguém que o dizia”.
São “tipos corajosos”, os poetas.
Vêem-se mais do que amiúde confrontados com o marasmo editorial. E depois há a
imprensa, “que simplesmente não fala dos livros, a juntar ainda a uma certa
máfia que controla o elenco daqueles de que se fala e daqueles que é necessário
silenciar, segundo poderes e compadrios, deixando às vezes irremediavelmente na
sombra um conjunto muito considerável de autores”. Após um silêncio, e a
propósito, recorda Larra: “escrever, em Portugal ou em Espanha, é chorar”. E é
por isso que os poetas são “tipos cheios de coragem. É necessária muita coragem
para viver. Já ando a bater nisto há muitos anos. Publiquei o primeiro livro há
já cinquenta”. E foi sempre muito difícil, afirma. “O mal não é de agora. Hoje
não é mais difícil publicar. Mas também não é mais fácil e isso é que é
preocupante. Passaram-se cinquenta anos e os vícios do sistema continuam
iguais”. Como se sobrevive? “É preciso ter muita força. Muita força ou muita
estupidez, duas qualidades que frequentemente se acompanham e mutuamente
aperfeiçoam”, comenta, rindo.
Talvez por estar ciente das condições
do sistema institucional literário, José Bento também entende que a tradução
tem por vezes a dimensão de uma aposta: “A tradução vai para além dos poetas
canónicos. O tradutor também aposta, como eu apostei em Francisco Brines ou
Eloy Sánchez Rosillo, autores praticamente ignorados em Portugal”. Peço-lhe que
me explique a aproximação ao primeiro: “A primeira vez que li Brines fiquei
fascinado. Estava a dar formação na Lisnave - isto para verem os sítios
obscenos por onde eu já andei, cursos técnicos para engenheiros, a pior gente que há –, e nos intervalos do
curso punha-me a ler. Um dos livros que levei e li pela primeira vez ali foi Palabras a la Oscuridad. Fiquei
fascinado”.
Pouco tempo volvido foi a Madrid, em
Novembro de 1976. Tinha encontro marcado com Carlos Bousoño, amigo de anos, e
pediu-lhe que o levasse a conhecer Francisco Brines. “Ia a Madrid muitas vezes,
estava lá mais ou menos tempo conforme o tempo e o dinheiro de que dispunha. E
então encontrámo-nos os três: eu, o Carlos Bousoño e o Francisco Brines. Comecei
a dar-me com o Brines. Quando ia a Madrid encontrava-me com ele. Só passado
algum tempo publiquei a antologia da sua poesia, já com o apoio de bolsas
oferecidas pelo Ministério da Cultura espanhol”.
Sem ditos apoios seria impossível publicar
algumas das traduções que fez, tais como a longa antologia da poesia espanhola
contemporânea ou aqueloutra dos Siglos de
Oro. A primeira merece-lhe uma recordação particular: “chegou inclusive a
haver um compromisso meu com o Ministério da Cultura português. Eles
comprometeram-se a publicar essa antologia depois de eu os consultar. Acharam
bastante interesse naquilo. O David Mourão-Ferreira interessou-se também muito.
Entretanto mudou o governo e ele foi corrido e substituído por um meu ‘amigo’
que lixou aquilo tudo”. Depois de uma pausa, prossegue: “Já estão a ver o que é
a amizade”. A mencionada recolha viria a ser publicada tempos depois e seria
mesmo considerada em Espanha a melhor antologia de poesia espanhola
contemporânea.
Entre obras de uma dimensão só por si
respeitável, e obras cuja língua requer um trabalho apurado de versão, José
Bento não tem dúvidas: “O livro mais difícil foi sem dúvida o Quixote. Aquilo deu trabalho como o
diabo”. Lera já a tradução de Aquilino Ribeiro, “uma versão muito livre feita
por um grande escritor” com a habilidade de não resolver nenhuma dificuldade de
compreensão ou de leitura de algum momento mais ambíguo do texto original: “Ele
salta sempre, não enfrenta as dificuldades”. A revisão da tradução, de que ele
próprio se encarregaria, ficaria por fazer, pois entre a conclusão do trabalho
e a data prevista de publicação foi-lhe detectado um cancro. Após a recuperação
da doença, procedeu à revisão, mesmo tendo sido publicado o livro, “cheio de
gralhas”, na data prevista. O trabalho de revisão da tradução tomou-lhe “mais
de meio ano, de manhã à noite” e dele resulta a edição de bolso da Biblioteca
de Editores Independentes em circulação.
Há neste labor a tranquilidade e o
aparente descomprometimento de quem se habituou a viver entre línguas, entre
literaturas, construindo e explorando os bairros às vezes clandestinos da
marginalidade periférica aos grandes centros dos cânones nacionais. José Bento
desconfia do mito das literaturas nacionais,
cunhadas pelas marcas pitorescas: “Isso hoje, mais do que nunca, tende a
esbater-se. A literatura pende para a universalização, sobretudo a partir do
século XIX. Todos conhecemos a influência de Flaubert em tantos e tantos
romancistas, e Baudelaire domina toda a poesia desde a segunda metade do século
XIX, excepto a inglesa”.
É por isso mais estranho ainda o silêncio
que insiste em interpor-se entre Portugal e Espanha, mesmo quando lemos como
nunca os autores ibero-americanos. “Há um português que afirma que temos de
melhorar as relações luso-portuguesas.
Conhece-se, trata-se e cuida-se muito mal a língua e a literatura portuguesas
em Portugal. Não podemos exportar aquilo que nós próprios não consumimos. Veja
que o nosso país, e isso nunca foi tão verdade como hoje, tem estado na mão de
meia dúzia de bestas”. É necessário cultivar, como os espanhóis cultivaram, o
que em nós é de cunho identitário mais vincado: “A literatura portuguesa
conseguiu vingar, no século XIX por exemplo, muito mais significativamente do
que a literatura espanhola, precisamente por termos cultivado aquilo que somos.
No século XIX, Espanha tem apenas praticamente um grande poeta, Gustavo Adolfo
Bécquer, um tipo que morreu com trinta e seis anos”.
As contas equilibram-se à medida que
vamos avançando no século XX: “Portugal tem um poeta que eles não têm, um
Pessoa. Mas eles têm um conjunto de poetas muito significativos, começando por
Miguel de Unamuno e Antonio Machado, os quais, curiosamente, tinham alguma coisa
muito especificamente portuguesa. Depois vem a geração de 27, com três ou
quatro poetas absolutamente formidáveis, Lorca, Cernuda, Guillén, que,
equivalendo em termos geracionais à nossa Presença,
lhe é bastante superior”.
Não há entre estes autores qualquer um
que José Bento não tenha traduzido. Observo-o enquanto um longo silêncio se
insinua entre nós e a conversa, à medida que ele fixa o olhar sobre o Palácio
Nacional de Sintra, cuja fachada está coberta por andaimes e tapumes. Alguns
minutos depois, enquanto caminhávamos em direcção ao jardim do município, onde
faríamos as fotografias seguindo a solicitação do João, contou-nos ainda de um
projecto para uma antologia da poesia ibero-americana em dois volumes, da
paixão pela música clássica e pela pintura de El Greco, de como disse a
Vergílio Ferreira, num jantar, que António Nobre não estava tuberculoso por
alturas da composição dos poemas do Só.
Fez-se tarde, mas José Bento ainda assim esperou que fôssemos nós a iniciar o
cerimonial da despedida. Com a mesma paciência. Mesmo que a sua mulher, de
entre todas a pessoa que mais vezes mencionou, o esperasse provavelmente mais
cedo.
Sintra, Julho de 2013
Fotografia de João Varela
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