O Prémio Leya, ao qual podem concorrer obras inéditas de ficção narrativa em língua portuguesa (e cujo vencedor deste ano foi conhecido na semana passada), tem um regulamento que contraria o modo como ele é anunciado e publicamente percebido. Em primeiro lugar, a decisão do júri, “constituído por, pelo menos, sete destacadas personalidades do mundo literário e cultural”, exerce-se sobre um corpus de, no máximo, dez inéditos, seleccionados pela editora entre um total de algumas centenas de concorrentes (um número tão espantoso que é fácil adivinhar que a maior parte nem aguenta uma triagem feita após a leitura da primeira página ou, até, do primeiro parágrafo). Portanto, o júri escolhe num universo restrito resultante da escolha feita por outrem, que é uma parte interessada e não neutra. Em segundo lugar, o prémio, no valor de 100 mil euros, parecendo enorme para a nossa escala, tem uma contrapartida que não é assim tão generosa: o autor abdica de receber direitos de autor até aos 85 mil exemplares vendidos e “cede à Leya o direito exclusivo de explorar comercialmente [o livro] sob todas as formas e em todas as modalidades, em todo o mundo”. É provável — quase seguro — que o montante do prémio seja uma quantia muito superior ao que o autor ganharia se o livro não beneficiasse desse veículo que potencializa as vendas e outros modos — eventuais — de rendimento. É porém completamente falso dizer que o autor ganhou um prémio de 100 mil euros, como se não estivesse a ceder, como forma de pagamento, os direitos de autor. Este prémio funciona assim como um contrato e não como uma doação: a editora simula que está a oferecer 100 mil euros, mas na verdade o que está a fazer é ceder o capital de prestígio — simbólico — que angariou através de determinadas regras do campo literário (antes de mais, mobilizando “destacadas personalidades”, que têm uma função legitimadora) e a organizar o ritual de modo a converter o capital simbólico em capital real. Não há nada de novo a assinalar neste mecanismo (cujo regulamento é público e transparente), a não ser o facto de se tratar de um contrato que precisa de ser dissimulado como prémio para que se criem as condições — certamente não muito fáceis — para que as duas partes ganhem a aposta. A questão mais interessante que aqui se coloca é a seguinte: da “ecologia” literária onde se desenvolvem estas espécies está ausente qualquer concepção de uma literatura autónoma (o que não exclui que livro premiado contradiga o “meio” de onde nasceu o prémio). Um prémio deste tipo situa-nos na condição de uma literatura como género editorial. É essa hoje, também, a condição de uma “literatura mundial”, que já nada tem a ver com o conceito de Weltliteratur que Goethe anunciou nas suas conversas com Eckermann. Esta nova “mundialidade” da literatura não é um estado que caracteriza um conjunto de obras, mas um processo pelo qual o universalismo literário de uma world fiction se conseguiu impor por todo o lado. Esta nova literatura mundial diz-nos muito sobre o editorialismo (noção que abrange muito mais do que as editoras de livros), mas muito pouco sobre a literatura. Há uma fábrica do universal que transformou toda a ecologia literária, de tal modo que se justifica esta pergunta: para onde vai a literatura? E a resposta, fácil de obter quando se entra hoje numa livraria, é esta: vai no sentido do seu desaparecimento, ou pelo menos de uma forma de desaparecimento que nos faz ver claramente quão exíguo é o espaço público que lhe está reservado.
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