Quando lhe liguei, a chamada caía
repetidamente, ou a voz que a linha transportava era sussurrante em demasia
para um entendimento. Percebi depressa que as coisas se fariam devagar, com
tempo e com a satisfação da paciência. Perguntei-lhe pela possibilidade de
deixar-se fotografar para a revista. Respondeu-me que fotografias suas
ter-lhe-ão feito apenas duas ou três nos oitenta anos da sua vida e confidenciou-me
que, de entre todas, gosta somente daquela em que conversa com alguém, há já
décadas, na Cotovia. Quando o encontrámos em Sintra, naquele que seria o domingo
mais quente do ano, José Bento, apresentando-se ao João e sabendo que ele era o
fotógrafo de que lhe falara, reproduziria com uma exactidão espontânea o que me
contara por telefone, uma semana antes, sobre como empregara o primeiro
dinheiro que ganhara na compra de uma máquina fotográfica que quase nunca usou.
Mas não foi por aí que começámos a nossa conversa.
Ainda antes das apresentações, feitas
de modo mais detido no táxi que nos levou da estação de comboios para a vila,
olhava a serra que oscilava sob o caramelejo, e dizia-nos que era ali que os
casais jovens marcavam encontro. “Uma espécie de reinvenção moderna da
Arcádia”, acrescentou. E sorria. Umas horas mais tarde, enquanto nos
preparávamos para abandonar a esplanada do Café Paris, onde se escutava mais o
espanhol que o português, explicaria que tinha por hábito caminhar pelos montes
após os almoços com amigos espanhóis em sua casa, por alturas da feira de São
Pedro, e amiúde se deparavam com eles.
O empregado de mesa teve de insistir um
punhado de vezes para que decidíssemos o consumo, enquanto a conversa nos
envolvia na sonolência do pico da tarde. Aquele homem, como nós próprios, não
vinha da metrópole, e isso pressentia-se na languidez dos gestos, no passo
lento enquanto recomendava o ar da serra, “coisa de se cheirar”. Mais tarde,
entre a vegetação densa dos jardins de Sintra, José Bento explicar-nos-ia que
era natural de uma aldeia na região de Aveiro, na qual a sua família causara
uma forte impressão com uma cama de rede que trouxera do Brasil e que
suspendera entre as figueiras onde costumava dependurar-se com o seu irmão, até
cair alguma vez de maduro, tendo-se quebrado o ramo em que se sustinha. O modo
como olhava as pedras e recordava Pascoaes, que conheceu, condizia de forma
talvez surpreendente com as recordações de Madrid.
“Fui diversas vezes a Espanha apenas
para procurar um livro”, comenta, enquanto o empregado de mesa conquista, após
um punhado de tentativas frustradas, a informação de que carece, aprendendo,
também ele, a paciência: um descafeinado e um éclair de chocolate. Quem diz
Espanha diz sobretudo Madrid, “porque havia mais oferta, e tinha por lá muitos
amigos”, mas também Salamanca ou Badajoz. Era a sede da leitura, sempre mais do
que o ofício de tradutor, se é que de uma a outro há com efeito alguma
distância, que o movia.
Confrontado com a importância que o
catálogo das suas traduções tem no estabelecimento de um cânone da literatura
espanhola em Portugal, José Bento recorda que “há por aí um prémio que distingue
as figuras que mais tenham contribuído para a divulgação da cultura ibérica,
prémio esse que já foi atribuído a diversa classe de gente e que eu nunca
obtive”. Pergunta-se: “é estranho, não é?”; e é ele próprio quem responde: “em
Portugal não tratamos bem ninguém, mas também não são os prémios que me movem”.
A sua vida literária, a haver uma, sempre se pautou, de facto, pelo recato e
pelo comedimento: “A minha vida é estar em casa. Não faço a vida literária.
Estou em casa, trabalho, passeio, quando era mais novo fazia as minhas viagens.
Nunca me preocupei com manter relações. Entrevistas, fotografias, é coisa que
praticamente não deixo”.
Em retrospectiva, cito
indiscriminadamente um conjunto infindável e muito respeitável de nomes de
autores que constam do elenco das suas traduções (San Juan de la Cruz,
Fray Luis de León, Jorge Manrique, Rojas, Góngora, Gustavo Adolfo Bécquer,
Garcilaso de la Vega, Francisco de Quevedo, Antonio Machado,
Juan Ramón Jiménez, Vicente Aleixandre, Federico
García Lorca, Cernuda, Miguel
Hernández, Jaime Gil de Biedma, César Vallejo, Pablo Neruda, Unamuno, Ortega y Gasset, Borges, María Zambrano, Octavio Paz, Lope de Vega, Calderón de la Barca, Valle-Inclán…), mas não parece muito interessado em
falar do passado, cortando-me a palavra: “Acabei há dias por uma segunda vez o
segundo livro que traduzi”. De que livro se trata? “O Lazarillo de Tormes”, responde. “Nos meus vinte anos fiz a
tradução, li-a, achei que estava uma porcaria e rasguei aquilo tudo, de maneira
que fiquei com aquela entalada e nunca mais lhe peguei. Até agora”.
O trabalho nunca pára: “Agora tenho uma
série de coisas para publicar, mas a edição está de rastos. É certo que a
Assírio ainda vai dando um jeito. Actualmente o mundo das editoras está
completamente esfrangalhado”. José Bento já fez mais pela literatura espanhola
do que qualquer ministério ou programa governamental. Não é, no entanto, algo
que o preocupe. Recusa assumir a tradução como uma espécie de missão: “nunca
tive a ambição de ser um divulgador. Traduzi sempre simplesmente porque gosto e
o que gosto de traduzir”.
Detenho a conversa no ponto em que toma
o processo do seu trabalho. “Normalmente faço tudo de forma rápida. Ou então
demoro anos e anos. A antologia de Unamuno, por exemplo, andei a trabalhar nela
durante cinquenta anos. Quando comecei tinha para aí uns dezoito”. José Bento
sabe, desde que me perguntou por mim no táxi, que Miguel de Unamuno me
interessa e faz questão de alongar-se sobre o autor espanhol: “Unamuno também
me interessa bastante. Interessa-me como poeta e como pessoa. É o maior espanhol
do século XX. Até mesmo para aqueles que não gostavam dele e que eram dele tão
distintos, como Cernuda, por exemplo, que afirmou que era o maior poeta
espanhol de novecentos”.
É apenas um dos muitos autores de
língua espanhola que traduziu, em milhares de páginas que definem um cânone
mesmo na perspectiva da historiografia espanhola. Mas a conjuntura editorial
actual não está conforme com tamanho empreendimento: “Agora é impensável
traduzir muita coisa, porque não há editoras com possibilidade de estarem
interessadas. Além disso estou velho e tenho pouca pachorra. Ainda se fosse somente
o trabalho, mas depois andar ainda à procura de quem se interesse pelo
produto…” Tem preparada, não obstante, uma antologia de Borges a publicar-se em
breve, a tradução de Persiles y
Segismunda de Cervantes e um livro que lhe é particularmente querido, que
está para sair há já vários anos, Ocnos,
de Luis Cernuda.
Apressa-se a desmentir que levou uma
vida dedicada à tradução. “Não é uma vida inteira. Fiz muitas outras coisas,
trabalhei num escritório, fui professor, sei lá, não foi só traduzir”. Insisto,
não obstante, na quantidade e qualidade pouco comuns do seu trabalho de
tradutor. “Tantos anos a traduzir espanhol já é mania. Comecei como qualquer
leitor, depois experimentei traduzir e gostei. Um tipo entusiasma-se e depois
atrás de um vem outro. Mas durante muito tempo não havia editores para as
traduções que eu fazia”. Até à criação, em Espanha, de subsídios à tradução de
autores de língua espanhola para outras línguas. “Foi então que os editores se
interessaram, sobretudo a Assírio, contando com essas ajudas”. Com ditos apoios
se publicaram, entre outros, Garcilaso, Quevedo, La Celestina. Das traduções não recebia, porém, grandes
contrapartidas financeiras: “Tive sempre outras fontes de rendimento nessa
altura. Estamos a falar dos anos 60 e seguintes e eu tinha um emprego em que
ganhava razoavelmente bem. Era desse emprego que vivia, nunca das traduções”. Estas
eram fonte apenas de trabalho, “para fazer o gosto ao dedo”, como afirma,
dirigindo-se ao João: “é como você com a fotografia, não é? Uma espécie de prazer
solitário”.
O primeiro livro que traduziu foi Platero y yo. “Já tinha lido muitos
livros espanhóis e teria uns vinte ou vinte e um anos quando um amigo levou
aquela tradução ao Jorge de Sena, que gostou bastante dela. Na altura, ele era
o director literário da Livros do Brasil e foi lá que o livro se publicou. Foi
assim que começou”. De início, pensou que seria uma experiência sem
continuidade. Entre 1958, ano em que se publicou a sua tradução do livro de
Juan Ramón Jiménez, e a publicação de uma antologia de Neruda, organizada e
traduzida por si, José Bento esteve quinze anos sem publicar. “Durante os anos
que se interpuseram entre um livro e outro traduzi um sem fim de coisas para a
gaveta. Quando se publicou a antologia, Neruda tinha até uma certa saída, pelas
conotações políticas que implicava. E foi só depois de 85 que comecei a
publicar com mais regularidade”.
As coisas começam a tornar-se mais
sérias quando a sua vida se cruzou com a de Manuel Hermínio Monteiro, editor da
Assírio & Alvim. “Tinha eu na altura uns quarenta anos. Conheci-o por acaso,
na rua do Carmo, que eu subia acompanhado de um amigo que nos era, afinal,
comum. Ao tomar conhecimento das minhas traduções, mostrou-se desde logo muito
interessado em publicá-las”. Foi assim que a Assírio se fez a sua casa
predilecta, conta: “se não fosse o Hermínio… Ele é como a alma da edição”.
*Fotografia de João Varela
Sem comentários:
Enviar um comentário