quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Seis poemas de Carlos Sahagún


A ESTAS HORAS

Nas bocas do metro ninguém espera
ninguém. Vêem-se apenas mãos,
extremidades mutiladas. Sob
a terra ouvem-se comboios e definhas,
ouvem-se detonações onde brilha
um instante a tua ausência e o meu infortúnio.
Nada, de resto, está mudado.
O tempo é ainda uma ponte escura,
metálica, condenada, ou certa música
que atrás de mim dura destecendo-se.
E tu, mensageira do outono,
já não poderás perder-te nesta névoa.
 Na torre, um sentinela aguarda,
traça sinais bem visíveis, sente
o preguiçoso ritmo dos teus passos
pela vereda das indecisões.
 Haverá outro tecto para teu refúgio?
Eu próprio, ó morte, sou a tua casa.



RIO
                       
O rio adolescente perdia-se, na planície,
                        gozosamente triste, como o coração.
                                                           HÖLDERLIN


Chamaram pós-guerra a este troço de rio,
a este viveiro de mortos, à cidade, aquela
dobrada como árvore velha, sempre cravada
na terra como se fosse uma cruz. E gritaram:
«Alegria! Alegria!»
Eu era um rio nascente,
era um homem nascente, com a tristeza aberta
como uma porta branca, para que o vento entrasse,
para que entrasse e agitasse as folhas
do calendário imóvel. Castelos no ar
e, embora no ar, derrubados, os sonhos
feitos pedra, madeiras que não querem arder,
raios de sol manchando os vidros mais puros,
altíssimas pombas que já não conseguem voar…
Estão a vê-lo? Vocês, os que vêm de longe,
vocês que têm o braço livre como as águias
e levam nos lábios uma rubra alegria,
passem, fitem-se em mim, tenham fé. Eu era um rio,
eu sou um rio e tenho marcado a fogo o tempo
da dor bombardeada. Minha idade, minha idade de homem,
não o esqueçam, um dia perder-se-á na terra.


A HISTÓRIA COMEÇA AQUI

A história começa aqui. Foi numa tarde
em que as pombas se haviam tornado
mais brancas, mais tranquilas. Como sempre
saí para o jardim. À volta não havia
ninguém: a mesma flor de ontem, a mesma
paz, as mesmas janelas, o mesmo sol.
À volta não havia ninguém: uma árvore,
um balcão, cinza naquele monte
longínquo. À volta não havia ninguém.

Mas este vento o que é, quem me apanha
o coração e mo levanta tenso,
e o funde e mo levanta tenso? Uma
rapariga azul na orfandade do ar
arrumava os pássaros. As suas mãos
acariciavam com piedade a árvore,
e o balcão, e aquele longínquo monte
em cinzas. O jardim ardia ao sol.

Olhei-a. Nada. Olhei-a outra vez,
e nada, e nada. À volta, a tarde.



COISAS INESQUECÍVEIS

Mas antes de tudo pensa nesta pátria,
nestes filhos que serão um dia
nossos: o menino lavrador, o menino
estudante, os meninos cegos. Diz-me
o que vai ser deles quando crescerem
e forem altos como eu e desamparados.
Por mim, pelo nosso amor de cada dia,
nunca esqueças, peço-te que não esqueças.
Nascemos os dois com a guerra. Pensa
no quão má foi aquela guerra para
os pobres. O nosso amor podia ter sido
bombardeado, mas não foi.
Os nossos pais podiam ter morrido
e não morreram. Alegria! Tudo
esquece. É o amor. Mas não. Existem
coisas inesquecíveis: esses olhos
teus, aquela guerra triste, o tempo
em que virão os pássaros, as crianças.
Acontecerá em Espanha, nesta terra
má que tanto amei, que quero tanto
que ames tu até chegares a odiá-la. Amo-te,
gostaria de não me lembrar da pátria,
deixar tudo aquilo para trás. Porém,
não podemos alheadamente
viver e pronto, amar-nos, onde um dia
morreram tantos justos, tantos pobres.
Ainda que apesar do nosso amor, lembra-te.




PRAIAS DE EXMOUTH

Pergunto-me se um homem, diante destas praias,
tem o direito de que se lembrem
do seu amor, do que outrora pronunciaram
os seus lábios, dos seus passos pelos caminhos
ao sol, ou das suas mãos
que na noite se fundiam de vez em quando, ou iam
entrelaçadas às tuas
como a um presente vivo de cristais.

E se assim for, se tu me esperares,
hei-de estender os braços neste mar do norte
e atracarei em ti.
Porque se neste instante tu estás além com conchas,
estreitando o teu olvido às minhas palavras,
e se as sentes como verdadeiras,
eu não estou esquecido.

Dez, doze barcas de pescadores,
como se atadas também à minha esperança,
estão aqui e estão a puxar-me
a mim mesmo, ou talvez
não estejam tão perto assim, mas na distância.
O meu coração poderia recordá-las,
conduzi-las a outro tempo.
Barcas que vi a teu lado certa manhã,
em Espanha, a dois passos
da felicidade de estar contigo.



OESTE A SÓS

Eu estava lá, debaixo das rodas
de uma locomotiva, na Califórnia.
Longas mãos do vento derramavam
areia em meus olhos, ouviam-se cascos
de cansados cavalos invisíveis.
Em volta, o ar aprisionava
a tristeza do Oeste a sós.
E eu não escutava nada, resvalava
pelo deserto ensanguentado o rio
da memória até à sua fonte: tu
soluçavas no fundo da noite,
filmando entre os teus lençóis longínquos
a minha repetida imagem fugitiva.
Assobiou de novo a locomotiva
e no silêncio que se seguiu não houve
ninguém para salvar-me. Desde então
tudo foi amargo e sem retorno como
um oásis na aridez do tempo.
Assim, enquanto a luz desfalecia,
procurei em vão a chuva redobrada
sobre o ardor da nossa juventude
e, desandando os caminhos, desejei
regressar vencido a casa, descer
à segurança do teu quarto, não ter
sonhado nunca com esta viagem
impossível, frustrada enfim, à América.

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