A
dimensão intimista e averbativa do diário de Llansol não prescinde de uma
relação de continuidade com a sua obra ficcional, criando um hibridismo
genológico que lhe é caro e que confirma, com Pachet, que o produto da escrita
do diário é uma enunciação histórica que recria – e que, portanto, não replica – o tempo histórico. A questão
temporal constitui, com efeito, a matéria sobre a qual o texto diarístico
llansoliano trabalha, aqui associada a um conjunto de pretextos de
auto-reflexão e de excursos pela génese da própria escrita, ligados às
dificuldades e contingências da sua vida na Bélgica, do ponto de vista
material, geradores de um certo desalento, de um certo tom geral de crise
intercalado com a habitual dimensão solar, epifânica, inscrita no quotidiano
revelacional de uma ordem biunívoca eu-universo própria da sua escrita.
Face à
evidência da crise de uns dias desprovidos de sentido imediato e que dificultam
o próprio processo da escrita, pela escassez de tempo e de recursos
financeiros, encontra aquela, a escrita, a sua primeira qualidade, a de constituir
um simulacro de fixação do próprio tempo, numa ilusão de perpetuidade gerida a
partir de uma cristalização de um agora
enunciativo que recusa o conteúdo precário daquilo que as palavras afirmam. Não
é assim de estranhar que se encontrem nestes escritos, como é aliás costume em
Llansol, diversas páginas sobre o acto da escrita como um modo de
desprendimento da contingência exterior ao processo mesmo de escrever, com os
seus episódios institucionais (os
pares, a História da Literatura, as academias, os prémios, os circuitos
editorias), como uma inscrição da escritora no lado da língua, gozando de uma outra espécie de temporalidade, à
maneira de Parrett, que entra no vórtice da repetição espiralar que o discurso
do e sobre o eu constrói como modo de sobrevivência, de resgate do próprio, às
malhas do tempo.
Assim,
o texto diarístico llansoliano é desses que se podem ler (como as suas ficções
que o são e não são tanto, ou quase, quanto os seus diários) sem uma ordem
específica, numa absoluta rasura da ordem do tempo linear e de uma afirmação do
instantâneo e do disperso, do casuístico como manifestação de uma recusa de
sujeição à cronologia. Este casuístico transporta-nos para um registo do
rotineiro, dos gestos que justamente pressupõem aquela espécie de afecto pelos
seres e pelas coisas que apenas a repetição, o serem todos os dias os mesmos e
novos a um tempo, ocasiona. A vida animal e vegetal, a vida da natureza, que encontra no olhar do eu
enunciador uma evidente simpatia, que
decorrerá precisamente do seu carácter a-cultural, não civilizacional e, como
tal, ciclicamente reprodutível, porque não demarcada por uma categorização
associada a centros discursivos estabelecidos exteriormente aos próprios
fenómenos, esta vida, dizíamos, serve frequentemente, não por acaso, de ignição
à escrita, à vocação da língua.
Parece
ser assim possível dar razão a Blanchot quando afirmava que a escrita de um
diário é ainda um modo de colocar o eu sob a protecção dos dias comuns e a
própria escrita ao abrigo da aparente aleatoriedade associada à banalidade dos
motivos desses dias, gerando uma regularidade discursiva que torna coincidentes
o viver e o escrever, porque o escritor do diário é aquele que vive em pose discursiva e escreve revivendo.
Llansol vai-nos dando por isso conta de uma procura de uma radicalidade (de
inscrição de raízes no seu próprio tempo) como quem funda pela escrita o espaço
que o tempo da vida real – da vida sem ela, sem a escrita – não deixa fixar. A
relação ambígua, uterina, com Portugal, a mãe desejada e fantasmática que não
deixa que o sujeito verdadeiramente se inicie na sua maturidade sem ela, na sua
orfandade adulta, é aqui revisitada outra vez. Portugal e a sua língua estão
constantemente no horizonte do texto, mesmo quando a Casa começa a ser Herbais
e se regista a maravilha da constatação da transposição de uma relação de
pertença-exílio que a autora-protagonista mantinha já com a terra-mãe, e que
faz desta uma autêntica figura geográfica substituta do país de origem, motivo
que obsessivamente revisitará ao longo da sua obra.
Esta contínua
deslocação do espaço de radicação do eu tem consequências ao nível da própria
disposição do olhar do mesmo, que é o olhar de uma nómada que vive
permanentemente num entre-lugar (a que sente, a um tempo, pertencer e não) para
a qual a escrita, e outra vez a escrita, serve de paliativo, de espaço que
abriga uma regularidade que anula essa espécie
de dualidade delirante, terreno da
estética moderna, que Deleuze e Guattari adjudicam à experiência da esquizofrenia e que exige uma esquizoescrita libertadora, finalidade da
literatura de Llansol. Nela começamos assim a compreender melhor a dimensão
autocentrada da proliferação de ecos, de relações entre os distintos textos que
compôs, da migração de figuras, motivos, actores e fragmentos entre diários e
ficções, da criação de duplos e de substitutos que procuram preencher de
palavras o espaço permanentemente esvaziado pela escassez do tempo que assinala
a existência humana.
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