Se a terra não fosse só esta mistura de
ervadia rala e rastejante e não fosse só esta boca sangrada para dentro
afundada de um peso onde a luz alentéjea branca da cal não penetra nunca, se
não estivesse coberta de um musgo seco e granítico e sobre ela não adejassem os
corvos dedilhando dissonantes a caixilharia dos ossos e das vértebras e dos
nervos que sobejam às vezes na embocadura da terra,
se
a terra não estivesse inteira sobre os cabelos e não houvesse ainda terra
depois deles e de tudo, e até dos lábios e até dos pulsos, avó, se embora sendo
ela uma barreira nela se abrissem veios de sangue desenhando o mapa subterrâneo
das constelações familiares, abrindo sulcos muito pelo meio em pleno centro do
mundo quase até tocar o lume que há no centro, e se os teus olhos calados não
parassem de palmilhá-la com as pálpebras fechadas e as pupilas acesas pelo
medo,
se
não estivesse tudo tão calado, se não estivesse tudo tão escuro, e tu ainda
gritasses para dentro dos dedos agora cobertos do sal terroso da terra, avó, se
a terra calasse o seu silvo ervaçal e puro e não jorrasse a prumo para dentro
da tua garganta e para dentro do teu útero desabado ao peso do chão, se a terra
não
então
talvez pudesses, suplicante ainda e rastejante, avançar com as mãos por sobre
os seios, e não havia precisão de ser muito, uns metros e já estava, avançar
por entre os caminhos rugosos de terra com as mãos à frente e os olhos
fechados, apalpando às cegas abrindo caminho entre os ossos até chegares ao
sítio onde ele estivesse, e abririas os braços e os teus seios desabrochados de
súbito maduros e breves, jovens e breves, os teus seios desnudos cairiam enfim
sobre a boca do morto, e dirias meu filho, não te rales meu filho que a mãe já
chegou.
E
o Alfredo não seria só este espasmo longínquo silenciado pelos dias, e
dir-te-ia perdoa-me ter-te morrido tão novo, e tu dirias cala-te e dirias ninguém
te faz mal, filhinho, a mãe já chegou, e os seus ossos de súbito despertos
enterrariam as clavículas nos teus cabelos desalinhados e enliçariam tranças
misturadas de raízes secas e no coração da terra o coração do Alfredo não
pararia nunca, seria uma raiz de subir do centro da terra até ao horizonte
sideral e não pararia nunca, e nunca pararia de subir.
E
quando a tia Marta acordasse e estendesse na cama os seus braços molhados
e houvesse no lençol transpirado um outro corpo desenhado e o seu sobressalto
fosse o mesmo, mas não exactamente o mesmo, o mesmo sobressalto de vergonha e
baba e culpa e pese embora mais calmo, mais penetrado de um desejo de se
estender sobre o mapa dos vincos do lençol borrado de suor, quando a tia Marta acordasse e gritasse um grito abafado como sempre e desta vez gritado para
dentro como se implodisse toda, então talvez chorasse pela primeira vez em
muito tempo, e chorasse a manhã toda a casa toda a vida toda de uma vez.
E
tendo chorado tudo, talvez se levantasse e pensasse em ti, e pensasse ainda no
Alfredo, e a boca se lhe fendesse num sorriso como uma rosa apaziguada que
nascesse directamente dos teus pulsos onde o Alfredo repousasse como num ninho
de mansos animais. E talvez então a tia Marta abrisse a cama e tirasse os
lençóis e os dobrasse muito à justa devagarinho e os pusesse na máquina e os
lavasse e os dourasse no estendal ao fim da rua de onde se avista a tua casa, e
os engomasse diante da porta aberta, olhando o campo em volta e respirando
fundo, respirando em paz.
E
quando com o vapor quente subisse o cheiro a roupa lavada, a tia Marta teria vontade de cantar, e não cantaria tão baixinho como faz sempre, pela
timidez ou pelo respeito ou pelo medo que as palavras do pai não derrubam,
mesmo quando o pai diz parece-me uma sereia sentada muito ao longe, mesmo
quando diz mais alto porra que aqui ninguém é mouco, mesmo quando diz baixinho
seja se baixinho até nem se sai mal. E a sua voz talvez se misturasse com a
água quente do vapor nas palmas das suas mãos caladas, poisadas no lençol,
talvez se misturasse com as lágrimas, e pensasse no Alfredo e pensasse em ti.
Se
a terra não fosse só esta mistura de pastagem tanta e tão confusamente alagada de
excremento e de lixo urbano e de fedor das águas paradas, talvez tu segurasses
essa rosa entre os dedos e os teus cabelos pisados de raízes irrompessem para
dentro dessa rosa e a nutrissem para sempre. E então a tia Marta talvez
levasse as mãos à boca como quem leva uma palavra a enterrar e a dissesse uma
última vez, desculpa, desculpem, e pensasse para consigo Alfredo, agora
cala-ta, agora já ninguém te faz mal.
E
então subisse de novo as escadas, e fosse como uma rapariga descalça que
descesse ao deserto ao rés de ti, e sozinha ao pé da cama poisasse os dedos
sobre os olhos, poisasse os dedos sobre o ventre, rasgado e profundo como um
clamor da terra, e se despisse toda e resvalasse inteira e nua sobre a cama e
os vincos não fossem nunca mais de medo e o suor nunca mais de culpa e fossem
só um mapear dos veios que há na terra, trilhando caminhos de amor e de acidez
até aos ossos.
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