2014 trouxe-nos uma das mais
importantes publicações das últimas décadas em Portugal, selecção da poesia de
Manuel de Castro, elemento precocemente desaparecido do anti-grupo do Café Gelo
pelo qual passaram com maior ou menor regularidade nomes como António Barahona,
João Rodrigues, Saldanha da Gama, Raul Leal, Ernesto Sampaio e Herberto Helder,
na sequência da dissidência surrealista e em torno da figura de Cesariny.
Encontramos
aqui a reprodução de Paralelo W
(1958) e Estrela Rutilante (1960),
bem como de uma série de textos dispersos em publicações diversas que se
integraram num território editorial avulso e marginal. Os livros de Manuel de
Castro aqui reunidos, publicados a expensas do autor, com tiragens limitadas,
“dádivas à balda pelos cafés e tascas, publicidade nenhuma”, como a propósito
dos mesmos recordava Luiz Pacheco em número do jornal «República» de Outubro de
1972, recusam assim submeter-se ao mercado da literatralha proliferante,
assumindo-se como autêntica poesia
underground, condição que infeliz ou felizmente continuarão a merecer mesmo
após esta edição.
É na
propensão tóxica do movimento de contra-cultura que o surrealismo afinal
constitui que compreendemos a decisão desta atitude de permanente dinamitação
dos discursos vigentes, de questionamento dos centros de emanação desse mesmo
discurso relativo às linhas epistémicas de leituras estética e ideológica. São
traços próprios daquilo a que com perdão dos próprios surrealistas
designaríamos por carácter civilizacional da sua literatura, a qual postula
decisivamente uma demarcação do locus
de enunciação dominante: “este é o tempo
em que morrem os príncipes/ao sol-posto num final sereno/e se iniciam os ritos
bárbaros/da Grande Velocidade”. Esta demarcação pressupõe, evidentemente, uma refundação do fazer
poético por uma geração com pretensão, desde logo, de produzir uma simbiose da
multiplicidade humana que concentre um esforço de relação primária com a
existência, no cumprimento de um absoluto quotidianamente negado: “Sobre os
cadáveres assim incorruptíveis/dos velhos príncipes desagregados no mar/passam
os navios/e a geração angélica e terrível/talha o seu destino sobre-humano/onde
a noite vai expulsar os astros/iniciar-se, e ter um nome diferente”.
A conotação mística dos versos citados
sublinha uma adesão a uma espécie de condição mágica da poesia e da palavra
como propulsoras de uma iniciação a um absoluto ou a uma supra-realidade que
Manuel de Castro enuncia na sequência daquela “febre de Além” que afirma
consumi-lo. O acesso ao supra-real justamente preconiza de novo uma relação total
e primária do sujeito consigo mesmo, relação essa alicerçada numa
concepção afim de um certo cratilismo constitutivo da linguagem, para cuja
realização é urgente, de uma urgência moral, desbastar a palavra feita
superficial pela sua subordinação aos sistemas de enunciação a que a mesma é
votada diariamente: “Falo-vos exemplarmente do éter/nenhum homem será
glorioso na morte/enquanto não se tornar total/e não possuir seu nome
exactamente”. A relação com o eu total e genésico ancora numa inclinação
para uma atenção aos elementos não meramente toleráveis do ser humano,
numa prática ostensiva da recusa da normalidade como vício de um sistema de
vida afinado de acordo com os discursos da superficialidade da relação no
domínio do espaço social, ecoando a concepção de um génio em rebeldia que
exerce uma liderança espiritual de remanescência romântica: “Nós os intocáveis,
os imundos, recusamos/nossa vida à condição comum./Porque é imortal a rosa que
nos leva/entre o dia e a noite./Nós os derrotados, impuros, oferecemos/nossa
miséria a um significado/oculto e diferente/…/ Nós os últimos dos últimos
coroamos/impérios e jardins”.
Não surpreende,
por conseguinte, o hermetismo declarado desta poesia, de foro
orientalizante, e que é
estritamente técnico, fundamentando
uma prática do estranhamento literário que projecta uma estética da velocidade
e da intensidade como mecanismos de irrupção da tencionada relação em
profundidade do sujeito consigo mesmo. “Asteróide em fuga”, uma das composições
mais explicitamente metapoéticas de Manuel de Castro, dá conta da posição
técnica aqui enunciada: “Cada centímetro cúbico da noite/ se adquire no
precipício do jogo/ com as palavras decompostas livres propulsoras/
lubrificadoras de ossos vorazes/ no ritmo largo das muralhas vencidas.// No
tempo permanente/ o exercício de extremo limite/ amplifica os ângulos/ destrói
as máquinas antigas/ propõe a celeridade como estilo/ no regresso possível à
pureza dos nomes// Deixa correr célere a pena sobre o papel branco e gelado/
semeado de gotículas azuis que são as palavras/ umas a seguir às outras
velozmente”. Eis a reincidência da defesa de um novo paradigma assente num
certo cratilismo (a pureza dos nomes)
revelacional do eu para o qual a estética da “celeridade” contribuirá na medida
em que permitirá a libertação das relações profundas entre imagens e palavras
contra o discurso das “máquinas antigas” que se cristalizaram numa
superficialidade enunciativa que despoja as palavras da verdade que enunciariam. Uma aproximação a um êxtase verbal
promoverá, assim, uma relação mais sensorial com o mundo (“nudez-carícia/ o
corpo inclina luz sobre a cidade/ luz imóvel/ extensa/ musical”), relação essa
em que emerge pelo menos uma apropriação de um supra-real em que a
convencionalidade é minimizada e em que o sujeito se revele em toda a sua
ambígua natureza, em que contacte consigo mesmo a partir de uma comoção verbal que promova uma relação estésica
com o mundo.
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