1. Quando
Gaston Bachelard designa a procura, por parte do indivíduo, de um espaço topofílico, aquele que mantém uma
relação tímica com o sujeito, um espaço doméstico
- a parte do mundo que delimitamos como casa
-, reconhece que a dimensão espacial da existência determina o modo como a
concebemos. Existindo, não somos chegados somente ao mundo, mas ainda a um
núcleo familiar que, mediando a nossa relação com ele, mapeia o conjunto das
primeiras coordenadas e funda uma educação familiar.
2. Pouco a
pouco, o mundo abre-se-nos em horizonte. A transferência da nossa existência do
espaço familiar infantil para um espaço mundano, amorfo e por esculpir,
determina a necessidade individual de romper o cordão umbilical com a casa familiar e de fixar um espaço para
ser. A casa do futuro surge-nos, adolescentes, como um lugar que se procura,
que não nos é um dado. Desse esforço
participa a educação, espaço determinante no tempo desta transição. Que essa
transição se faça de modo harmonioso e interrogante a um tempo, eis uma das
missões da escola, cuja topografia perfazemos
diariamente.
3. A
procura de um espaço para se ser está, desde logo, intimamente relacionada com
a perceção de um tempo que se adensa como limite:
crescer é também, e talvez sobretudo, aprender a viver com a evidência de que
ele nunca nos é suficiente. Por essa razão, a fundação de um espaço que se faz
através da escola é também um projeto de domesticação do tempo. No espaço-quinta,
justamente, a relação cronotópica
(relação espaço-tempo) surge agudizada. A passagem do tempo traduz-se
naturalmente na mutação do espaço: tudo
começa com a primavera, seguida do verão, do outono, do inverno. Quatro maneiras de descrever o colégio
(aluna A). O espaço-quinta concebe assim um simulacro útil de plenitude
temporal, suspendendo momentaneamente o pendor devorador de Cronos: Os intervalos passados junto às árvores,
arbustos e insetos que captam os últimos raios de sol são os melhores, sem
preocupações, com um único pensamento: quem
me dera fazer parar o tempo (aluna A).
4. O
espaço-quinta converte-se assim num mediador positivo na relação com um mundo
excessivamente acelerado, feito de recantos,
refúgios (nunca esquecerei os recantos
do colégio – aluna B), como elemento protetor (espaços que servem de refúgio
– aluna C) que potencia um progressivo aprofundamento da relação do eu consigo
mesmo, de autorreflexividade que promove o conhecimento do próprio na relação
com este espaço de conforto: conheço
estas quatro estações, momentos, rotinas, tal
como conheço a palma da minha mão (aluna A). A topografia converte-se assim em egografia.
Eu sou o meu espaço, chego a mim como quem entra em casa.
5. Escrever
sobre (escrever o) espaço-quinta
constitui assim sobretudo um modo de se pensar a si mesmo na relação com o dito
espaço. Além disso, escrever não é precisamente fixar a pessoa ausente (Freud), aquela que não permanece porque o tempo passa? A ilusão da
intransitoriedade gráfica faz deste projeto um modo ainda de dizer: fixo a
palavra como quem tranca, estando do lado de dentro, a porta de casa.
6. Sucedem-se,
assim, as imagens de nidificação, de protecção. O espaço (o tempo que nele se
manifesta) abraça-nos (o outono abraça-nos com os seus tons castanhos,
amarelos e vermelhos que cobrem o chão de
alcatrão da escola – aluna B), agasalha-nos (cores quentes outonais) em
face dos elementos frios (o alcatrão, tão mais da cidade).
7. Em
espaços como este brinca-se cumprindo-se o ensejo gregário que um espaço
topofílico (doméstico, familiar) engendra: brinca-se a criar “tribos” e consequentemente cabanas, correr pelos montes, tentar
trepar a árvores mais altas (aluno D). Com a proteção que é própria do
espaço familiar, gregário, tribal, lançamo-nos no movimento ascendente e
perigoso, sentimos que podemos enfrentar o desafio: trepamos a árvores,
lançamo-nos em coisas mais altas.
8. Estabelecemos
com o espaço-quinta a relação que o núcleo familiar promove, uma relação afectiva
e volitiva com uma espacialidade i-mediata
(não mediada) ao eu, à margem do mais estritamente racional. A experiência da
nossa relação com ele é fundamentalmente do nível dos sentidos, da
sensibilidade: Vai ser fácil recordar o início
do ano letivo, quando o Verão parte relutantemente, sentir e cheirar o Verão
que emana dos eucaliptos monumentais da escola (aluna A). Este é um espaço que nos sensibiliza (aluna B),
tudo nele nos é tão natural (não
convencional, mas antes patético) que
sentimos que nos acolhe, que se transfigura de modo a que possamos integrar-nos
nele. Um dos modos comuns da mencionada transfiguração é a imagem da
antropomorfização. O espaço personificado é aquele com o qual posso dialogar: as nossas árvores monumentais começam a queixar-se da falta do sol, começam
também a sentir as primeiras chuvas e
ventos (aluna C).
9. O apelo
ao imediato que em mim ocorre no espaço-quinta prefigura a natureza como
experiência, como aquilo que eu experiencio: estudar numa quinta é experienciar
a natureza diariamente e aprender a ser ecologicamente sustentável na prática (aluno E). Aprender a ser na prática, onde nos
ligamos ao que nos rodeia, através do fluxo emocional que projectamos neste
pequeno universo: estudar numa quinta
faz-me sentir ligada à natureza (aluno
F). Como quem tem a pupila ligada ao coração.
10.
Dialogando com este espaço, um espaço, já o
vimos, de intimidade, guardo em mim um segredo dele (os intervalos no chão de alcatrão a apanhar sol e a ouvir os pássaros
cantar uma melodia secreta de um
compositor anónimo – aluna C). Se partilhar um segredo é confiar, é
tornar-me de algum modo dependente de outrem, guardar o segredo de um espaço é
também sê-lo: Estudar numa quinta integrou-me
num espaço com elementos naturais (aluno G). Há um processo relacional que desindividua, pelo menos ilusoriamente,
o eu, que mobiliza nele uma vocação para a pertença (o anonimato, etc.)
11. Principiar
a habitar uma casa é também aqui, como sempre, principiar a excluir, a revelar o mundo em negativo: estudar numa quinta permite perceber melhor o que é a cidade (aluno
H).
12.O
espaço surge como uma força, como um dínamo:
estudar numa quinta faz com que possamos
ter a oportunidade de crescer num ambiente mais dinâmico (aluna I). Como qualquer força, o espaço torna
evidente ao eu um percurso palmilhável entre o dado e o projetado como desejo:
estando aqui, aspiro a chegar a um ali mais ou menos definido e por isso me
movo, não me dou por satisfeito, procuro, perscruto, pretendo. Para que ela
seja a minha, nunca me sinto
completamente feliz em casa.
13.Esta
orientação teleológica, futurante, do
espaço-quinta endereça o sujeito que o habita para uma série de possíveis: estudar num colégio com tanto espaço livre aguça em mim a curiosidade
sobre o que me cerca (aluno J). Porque o espaço está ainda livre, desejo ocupá-lo. É num espaço assim que nos
descobrimos agentes. Este não é só já
um espaço de repouso, de conforto maternal, segundo ainda Bachelard. Nele
arquitecto um ambiente de harmonia e de esperança (aluna C). O olhar
futurante que a partir dele atiro para o mundo faz com que o espaço-quinta se
abra à construção. Nós construímos esse espaço à medida que nos construímos:
nós somos, porque a escrevemos, a
história desta casa.
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