domingo, 26 de outubro de 2014

Como se escreve uma casa



1.      Quando Gaston Bachelard designa a procura, por parte do indivíduo, de um espaço topofílico, aquele que mantém uma relação tímica com o sujeito, um espaço doméstico - a parte do mundo que delimitamos como casa -, reconhece que a dimensão espacial da existência determina o modo como a concebemos. Existindo, não somos chegados somente ao mundo, mas ainda a um núcleo familiar que, mediando a nossa relação com ele, mapeia o conjunto das primeiras coordenadas e funda uma educação familiar.

2.    Pouco a pouco, o mundo abre-se-nos em horizonte. A transferência da nossa existência do espaço familiar infantil para um espaço mundano, amorfo e por esculpir, determina a necessidade individual de romper o cordão umbilical com a casa familiar e de fixar um espaço para ser. A casa do futuro surge-nos, adolescentes, como um lugar que se procura, que não nos é um dado. Desse esforço participa a educação, espaço determinante no tempo desta transição. Que essa transição se faça de modo harmonioso e interrogante a um tempo, eis uma das missões da escola, cuja topografia perfazemos diariamente.

3.    A procura de um espaço para se ser está, desde logo, intimamente relacionada com a perceção de um tempo que se adensa como limite: crescer é também, e talvez sobretudo, aprender a viver com a evidência de que ele nunca nos é suficiente. Por essa razão, a fundação de um espaço que se faz através da escola é também um projeto de domesticação do tempo. No espaço-quinta, justamente, a relação cronotópica (relação espaço-tempo) surge agudizada. A passagem do tempo traduz-se naturalmente na mutação do espaço: tudo começa com a primavera, seguida do verão, do outono, do inverno. Quatro maneiras de descrever o colégio (aluna A). O espaço-quinta concebe assim um simulacro útil de plenitude temporal, suspendendo momentaneamente o pendor devorador de Cronos: Os intervalos passados junto às árvores, arbustos e insetos que captam os últimos raios de sol são os melhores, sem preocupações, com um único pensamento: quem me dera fazer parar o tempo (aluna A).

4.    O espaço-quinta converte-se assim num mediador positivo na relação com um mundo excessivamente acelerado, feito de recantos, refúgios (nunca esquecerei os recantos do colégio – aluna B), como elemento protetor (espaços que servem de refúgio – aluna C) que potencia um progressivo aprofundamento da relação do eu consigo mesmo, de autorreflexividade que promove o conhecimento do próprio na relação com este espaço de conforto: conheço estas quatro estações, momentos, rotinas, tal como conheço a palma da minha mão (aluna A). A topografia converte-se assim em egografia. Eu sou o meu espaço, chego a mim como quem entra em casa.

5.     Escrever sobre (escrever o) espaço-quinta constitui assim sobretudo um modo de se pensar a si mesmo na relação com o dito espaço. Além disso, escrever não é precisamente fixar a pessoa ausente (Freud), aquela que não permanece porque o tempo passa? A ilusão da intransitoriedade gráfica faz deste projeto um modo ainda de dizer: fixo a palavra como quem tranca, estando do lado de dentro, a porta de casa.

6.    Sucedem-se, assim, as imagens de nidificação, de protecção. O espaço (o tempo que nele se manifesta) abraça-nos (o outono abraça-nos com os seus tons castanhos, amarelos e vermelhos que cobrem o chão de alcatrão da escola – aluna B), agasalha-nos (cores quentes outonais) em face dos elementos frios (o alcatrão, tão mais da cidade).

7.     Em espaços como este brinca-se cumprindo-se o ensejo gregário que um espaço topofílico (doméstico, familiar) engendra: brinca-se a criar “tribos” e consequentemente cabanas, correr pelos montes, tentar trepar a árvores mais altas (aluno D). Com a proteção que é própria do espaço familiar, gregário, tribal, lançamo-nos no movimento ascendente e perigoso, sentimos que podemos enfrentar o desafio: trepamos a árvores, lançamo-nos em coisas mais altas.

8.    Estabelecemos com o espaço-quinta a relação que o núcleo familiar promove, uma relação afectiva e volitiva com uma espacialidade i-mediata (não mediada) ao eu, à margem do mais estritamente racional. A experiência da nossa relação com ele é fundamentalmente do nível dos sentidos, da sensibilidade: Vai ser fácil recordar o início do ano letivo, quando o Verão parte relutantemente, sentir e cheirar o Verão que emana dos eucaliptos monumentais da escola (aluna A). Este é um espaço que nos sensibiliza (aluna B), tudo nele nos é tão natural (não convencional, mas antes patético) que sentimos que nos acolhe, que se transfigura de modo a que possamos integrar-nos nele. Um dos modos comuns da mencionada transfiguração é a imagem da antropomorfização. O espaço personificado é aquele com o qual posso dialogar: as nossas árvores monumentais começam a queixar-se da falta do sol, começam também a sentir as primeiras chuvas e ventos (aluna C).

9.    O apelo ao imediato que em mim ocorre no espaço-quinta prefigura a natureza como experiência, como aquilo que eu experiencio: estudar numa quinta é experienciar a natureza diariamente e aprender a ser ecologicamente sustentável na prática (aluno E). Aprender a ser na prática, onde nos ligamos ao que nos rodeia, através do fluxo emocional que projectamos neste pequeno universo: estudar numa quinta faz-me sentir ligada à natureza (aluno F). Como quem tem a pupila ligada ao coração.

10.                       Dialogando com este espaço, um espaço, já o vimos, de intimidade, guardo em mim um segredo dele (os intervalos no chão de alcatrão a apanhar sol e a ouvir os pássaros cantar uma melodia secreta de um compositor anónimo – aluna C). Se partilhar um segredo é confiar, é tornar-me de algum modo dependente de outrem, guardar o segredo de um espaço é também sê-lo: Estudar numa quinta integrou-me num espaço com elementos naturais (aluno G). Há um processo relacional que desindividua, pelo menos ilusoriamente, o eu, que mobiliza nele uma vocação para a pertença (o anonimato, etc.)

11.  Principiar a habitar uma casa é também aqui, como sempre, principiar a excluir, a revelar o mundo em negativo: estudar numa quinta permite perceber melhor o que é a cidade (aluno H).

12.O espaço surge como uma força, como um dínamo: estudar numa quinta faz com que possamos ter a oportunidade de crescer num ambiente mais dinâmico (aluna I). Como qualquer força, o espaço torna evidente ao eu um percurso palmilhável entre o dado e o projetado como desejo: estando aqui, aspiro a chegar a um ali mais ou menos definido e por isso me movo, não me dou por satisfeito, procuro, perscruto, pretendo. Para que ela seja a minha, nunca me sinto completamente feliz em casa.

13.Esta orientação teleológica, futurante, do espaço-quinta endereça o sujeito que o habita para uma série de possíveis: estudar num colégio com tanto espaço livre aguça em mim a curiosidade sobre o que me cerca (aluno J). Porque o espaço está ainda livre, desejo ocupá-lo. É num espaço assim que nos descobrimos agentes. Este não é só já um espaço de repouso, de conforto maternal, segundo ainda Bachelard. Nele arquitecto um ambiente de harmonia e de esperança (aluna C). O olhar futurante que a partir dele atiro para o mundo faz com que o espaço-quinta se abra à construção. Nós construímos esse espaço à medida que nos construímos: nós somos, porque a escrevemos, a história desta casa.



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