A novela que em 2012 valeu a Ana Teresa
Pereira o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores
retoma a tematização de uma demanda identitária de ambiência fantasmática em
torno de uma situação prévia de solidão, vivida pela protagonista, que integra
desse modo a problemática amorosa no horizonte da descoberta de um eu.
Revisitando o problema da apropriação do outro como instrumentalização
egográfica, Jane, actriz jovem e inexperiente, vê-se enredada pela dimensão
demoníaca de Tom, reputado dramaturgo de intenso pendor demiúrgico que vive em
busca de uma transcendência visada pela criação pigmaliónica de um universo fictício
de duração real, um “mundo perfeito” autotélico em que figurasse a personagem
feminina que engendra e à qual falta ainda o corpo que ela aparentemente lhe
oferecerá, porque ele “só podia amar de facto um ser criado por ele”. O
universo teatral justamente promove a possível coincidência performativa do
dizer ao fazer que realiza o encontro
catártico que a figura autoral deseja, diluindo as fronteiras entre ficção e
realidade de modo a que o eu possa aceder a si mesmo: “dirigir uma peça ou um
filme é procurar algo de tímido e interior, escondido nos bosques do nosso ser”.
O projecto de formatação de Jane por
Tom confirma a singular aptidão de Ana Teresa Pereira para a exploração do
medo, do quase horror. Como poucos,
sabe a autora que aquele não decorre de uma deformação do real mas sim de uma intensificação ou aprofundamento do mesmo, através da detenção do olhar. O horror é
aqui um modo de focar, num mapeamento dos detalhes banais do quotidiano que, sucessivamente
sobrepostos em movimentos espiralares, se deixam contaminar por uma espécie de
vertigem. O medo está disseminado sobretudo pela estratégia da repetição dos
gestos em camadas cada vez mais profundas de alienação do eu pelas rotinas:
“Foi um dia muito longo. Fez café fresco e comeu umas sandes à hora do almoço.
Durante a tarde, a neve continuou a cair. Acendeu as luzes porque o tempo
estava muito escuro. Viu alguns bailados de Balanchine. Ao anoitecer preparou
uma refeição ligeira e sentou-se no quarto da frente, junto da janela. À medida
que o tempo passava, convencia-se de que a estrada fora fechada, de que ele não
poderia voltar. Estava sozinha no vale. Não sabia se tinha força suficiente
para manter a sua realidade”. Assim se intensifica o universo referencial da
narrativa, a partir de uma aparente superficialidade inicial paulatinamente
dando para uma série de hesitações, receios e perturbações que torna a
psicologia das personagens labiríntica, especular: “O texto era enigmático:
começava de uma forma ligeira e depois ia escurecendo. Debaixo das palavras,
como um curso de água, uma corrente de medo, quase de horror”. A ameaça que
existe no que há de mais concreto e familiar transforma-se numa espécie de
obsessão, que a dimensão metaficcional desta narrativa ajuda a esclarecer: “Quando
estava a escrever, as coisas ligavam-se, ou antes, as suas ligações tornavam-se
visíveis, como se ao acender uma vela pudesse ver as teias de aranha no canto
de um quarto.”
Por via dessa iluminação das ligações, das teias de aranha no canto do texto, promovida por uma estrutura
enunciativa repetitiva, se conquista uma circularidade que engendra uma
topofobia: “Estavam prisioneiros no vale. As montanhas tinham-se aproximado, as
árvores eram fantasmas de árvores, o jardim era um labirinto sem folhas. Jane
abria a porta da cozinha e saía para aquele mundo branco. As suas pegadas na
neve. A nostalgia de uma flor, de um pássaro. De uma haste de erva”. Porque é
preciso que Jane seja “completamente” a
personagem e passe “para o outro lado”, a espacialização do medo concretiza-se
pela coincidência topográfica do cenário da peça que Jane interpreta com a casa
de Tom, onde nidificaria o seu amor que lentamente se transformaria em ameaça
de nadificação dela pela personagem que ele nela forjava. É naquele “vale
maldito”, totalmente isolado do mundo, mundo per-feito, cerrado e circular - “Queria um mundo que fosse
completo e perfeito em si mesmo. Como um buraco no universo” - que se processa a metamorfose, a partir da criação em
Jane de um passado que não era o seu, de memórias que nunca foram suas, as
“memórias de uma desconhecida” em que ela penetrava através de uma alienação
afim da loucura. Desse modo se adensa uma inquietante
estranheza que recobre o tema do duplo, a partir da participação, numa
pessoa, de duas personas, a partir de
um substracto agónico. Tom conhecia já Jane, conhecia-a sem ela: “Algumas vezes convencia-se de que o que faltava,
além de um terrível segredo que ele mesmo não intuía, era a rapariga. Conhecia
a sua forma de estar de pé, a sua forma de mover-se, o som dos seus movimentos”.
E por isso “Jane tinha de desaparecer, completamente, na personagem”. Pouco a
pouco ambas se confundem: “Ao amanhecer pensou que a peça e o seu livro de
infância tinham entrado um pelo outro, e que já não era possível separá-los. E
ela era a protagonista dos dois”. Jane começa a libertar-se de si mesma: “-
Nunca tinha sido assim antes. Eu… / - Tu desapareceste. / - Sim. / - Sim. / -
Conheces a oração de Miguel Ângelo… Senhor, liberta-me de mim mesmo… / - Para
que eu possa servir-te… / - Sim. / - E se um dia eu não conseguir voltar? / - É
um risco que corres. / - Ficar sempre lá”.
E no entanto há neste processo de
metamorfose uma porosidade que tende para inibi-lo, uma suspensão dada pelo
tópico da interrogação. Jane interrroga-se e onde principia a interrogação
principia a desconfiança (o contrário do amor) e a desconfiança é a primeira
modalidade da salvação: “Mas o coxear… ainda não sabia se era dela ou da
personagem…” Onde Jane pode cercar-se de uma zona de ocultação, em que Tom (o
autor) não intervém e a que apenas ela (a intérprete) acede, nasce o arbítrio
livre, e Jane também inventa a personagem, confundindo o
autor: “Sim, podia ser o corpo de uma bailarina. Sentiu uma certa ansiedade ao
pensar que isso podia mudar muito a peça… a sensação de que a peça não estava
terminada“. Tom torna-se vítima da sua própria estratégia e onde deixa
confundirem-se Jane e a personagem abandona-as a si mesmas e permite que exista
naquela ainda uma parte que a esta sobrevive. O dubitativo na relação do
criador com a criatura adensa entre ambos uma nebulosa de mistério que é uma
possibilidade de transcendência do eu dela por sobre a máscara que nela se
inventou: “Perguntava a si mesma se ele acreditaria de facto estar a criar uma
pessoa diferente. Ela é como eu, só com olhos azuis. Uma espécie de duplo”; “Mas
só quando começou a escurecer ele perguntou a si mesmo se ela seria outra
pessoa (…) Tinha a ver com os seus movimentos, com o seu ar cauteloso quando se
apercebia de que ele estava a observá-la, como se tivesse medo de fazer algo de
errado”. Agora “ele também estava perdido”, não tinha sido apenas nela que
despertara alguma coisa ou alguém, também ele é de súbito criado. Onde Tom se confunde com Deus e
não pode deixar de sonhar Jane, torna-se, como bem soube um Unamuno,
prisioneiro da sua própria criatura: “Ele não fora à aldeia. Tinha medo de
deixá-la sozinha, mesmo por umas horas. Aquele pequeno mundo, e ela, precisavam
da sua consciência para existir”. É onde a cobra da história se morde o rabo.
Jane vinga-se de Tom, e escapa-lhe, revelando-lhe que ele próprio é personagem: “- E tu? Estás apaixonada
por alguém? / - Estou apaixonada por ti. / - E ele? / - O homem na peça. / -
Sim. / - Não encontro qualquer diferença.” O percurso egográfico, a procura da
alteridade ficcional que devolvesse ao eu a sua própria substância, descobre
nele a dimensão da sua própria aparencialidade. Principiando a amar Jane, Tom
depende dela, instrumentaliza-se. O
autor perde o próprio poder enunciativo (adensa-se o diálogo) e o espaço que
criara, o seu pequeno mundo, começa a desvanecer-se: “Nos últimos dias, ela
parecia inquieta. Tom pensava que tinha a ver com o tempo. Não estava tanto
frio e o gelo começara a derreter. Fragmentos de gelo desprendiam-se do telhado
e das rochas”. É onde a ficção rompe com o universo topofóbico: “Nesse dia viu
algumas flores. Duas ou três campainhas brancas, alguns açafrões, muito juntos,
que pareciam ter saído da neve. Nas árvores, o movimento de um pássaro”. A vida
retomada outra vez.
Sem comentários:
Enviar um comentário