Em “Final do jogo”, Julio Cortázar aborda a emergência
da adolescência a partir da encenação de um jogo que três irmãs levam a cabo diariamente
num troço de caminho-de-ferro. Vendo passar os passageiros do comboio, diante
dos quais apresentam estátuas e encenam atitudes, desenha-se no seu horizonte a
viagem como percurso de afirmação identitária, tal como enunciada por Guattari,
como promessa de uma partida que a maioridade representaria, rasurando a
ligação a um espaço familiar de que procuram desprender-se. Nos domínios deste
jogo, nos limites ambíguos de um reino
que se inventaram para estender e transgredir aqueloutro da casa familiar,
revela-se uma certa topografia a fim de uma superação do sentimento de despertença suscitado por essa
ruptura com o familiar que a adolescência constitui, numa demanda de um espaço
topofílico no qual fixar a existência individual (transgredindo a ordem
gregária da casa materna). As raparigas procuram definir assim um espaço alheio
ao da sua familiaridade, fundando um reino – onde carnavalescamente se fizessem
rainhas contra a ordem dos dias comuns - e onde o lúdico se sobrepusesse à
realidade da asfixia de um futuro comezinho, marcado por uma condição
instrumental própria do seu papel doméstico, com existências arredadas do
deslumbramento da viagem em que os outros estavam já lançados, e abafadas pelo
seu papel de mulheres futuras, como aquelas que perpetuarão a casa e a sua
ordem claustrofóbica: «Nuestro reino era así: una gran curva de las vías acababa
su comba justo frente a los fondos de nuestra casa. Cuando nos agachábamos a tocar las vías nos subía a la cara el fuego
de las piedras, y al pararnos contra el viento del río era un calor mojado
pegándose a las mejillas y las orejas. Nos gustaba flexionar las piernas y
bajar, subir, bajar otra vez, entrando en una y otra zona de calor,
estudiándonos las caras para apreciar la transpiración, con lo cual al rato
éramos una sopa. Y siempre calladas, mirando al fondo de las vías, o el río al
otro lado, el pedacito de río color café con leche». O olhar
infantil descobre no horizonte vislumbrado a partir deste reino de transição, a
partir de um contacto iminentemente sensitivo com um espaço próprio de uma
hierofania, a promessa “al otro lado”, aquele vislumbre do “pedacito
de río color café conleche”. É certo que a predicação do rio denuncia desde
logo a sobredeterminação das marcas de familiaridade na relação perceptiva com
o mundo (o café com leite lá de casa),
o que, conforme veremos, inibe o processo de separação da casa familiar, mas
interessa-me agora destacar aquela que é, conforme se tem observado, uma imagem
reiterativa na obra de Cortázar, a da pretensão de uma ponte que permitisse
transitar de uma realidade que é território da insuficiência existencial a uma
zona de infinitas possibilidades de ser. Aquela porta branca a que a irmã-narradora se refere, que abre assim para
o reino destas raparigas, onde elas justamente desempenharão os diversos papéis
ditados pelo jogo, dá bem conta daquilo que é uma esquizofrenia inerente ao eu
e que exige ao sujeito mergulhado numa cisão radical de si a si uma esquizoescrita
libertadora, que aqui é sugerida pela dimensão performativa do jogo,
que adquire um sentido correctivo, sotoriológico.
Este jogo encena, de algum modo, a dimensão
delirante do espaço restrito, convencional, regulado, da casa familiar, emergindo
directamente como monstro do seio do sono da razão, da vigilância dos legisladores
adultos: «esperando que mamá y tía Ruth empezaran su siesta para escaparnos por
la puerta blanca», é preciso que os adultos adormeçam, é na sua letargia que a
infância se descobre um horizonte de libertação para a maioridade sem eles.
Naturalmente, a transgressão da relação amorosa que abriga aquele núcleo
familiar recobrir-se-á de um pendor sádico próprio do ambíguo processo de
separação, do desgaste que o pulsional origina nas estruturas do superego, e
por isso “la satisfacción más profunda era imaginarme que mamá o tía Ruth se enteraran
un día del juego”. Este sadismo constitutivo do afecto dirigido às figuras do
universo familiar encontrará ainda, como seria de esperar, uma vítima para uma
transferência que tem evidentes traços autopunitivos: o gato, que interessa a Cortázar
pela sua dualidade domesticidade/independência, surge aqui como avatar do
paradoxo pertença/transgressão em que as raparigas se acham afundadas: «El
recurso heroico, si los consejos y las largas recordaciones familiares
empezaban a saturarnos, era volcar agua hirviendo en el lomo del gato.» Este
exercício da crueldade tem valor de autonegação e é premonitório do destino
destas raparigas: aquilo que elas violentam é a sua própria circunscrição a uma
existência adormecida num entrelugar, num reino que é, como disse, extensão e transgressão da própria casa.
Através dele, elas procuram gerar a confusão e a discussão no seio da cozinha
(espaço protótipo da domesticidade), a fim de fugirem para o seu reino,
escapando às repreensões maternas que, sugestivamente, as ameaçam com «irem
viver para a rua». É bom de ver que aquilo que nesse reino acharão justamente
não as libertará, assim como o gato é e não é lá de casa.
É
preciso insistir no detalhe de ser na cozinha que se inicia a fuga para o reino
do jogo. Nele, no seio do desempenho das atividades domésticas que, como
raparigas, lhes estavam prometidas, as duas irmãs, Holanda e a narradora,
descobrem o horizonte do seu futuro caseiro, serviçal, obediente a uma lógica
convencional que tão contrária é à da euforia estética e imaginária do seu
jogo. E, por isso, estabelecem uma relação conflitual com a mãe e a tia,
separam-se do núcleo da casa criando uma facção que as enfrenta, gerando uma
pretensa alteridade que lhes permite criar as condições da fuga, tornando-se
especialistas em gerar brigas em plena cozinha: «Mamá y tía Ruth estaban siempre
cansadas después de lavar la loza, sobre todo cuando Holanda y yo secábamos los
platos porque entonces había discusiones, cucharitas por el suelo, frases que
sólo nosotras entendíamos, y en general un ambiente en donde el olor a grasa,
los maullidos de José y la oscuridad de la cocina acababan en una violentísima pelea.
Uma terceira irmã, porém, não entra no espaço da
cozinha, não é iniciada nas lides domésticas, e como tal não participa da
criação do espaço para a fuga que as irmãs promovem: Leticia, que sofre de
paralisia parcial e que acabará por converter-se em personagem central deste
conto. É que a paralisia de Leticia, contrariando justamente a noção de
movimento inerente à fuga desejada pelas irmãs, acabará por sintetizar o destino
de fracasso desse ensejo, pelo sobrepujamento das condicionantes de coerção,
imagem de uma condição humana vivida sob o signo da insuficiência e, como tal,
do desencanto. Sobre ela, diz-nos a
narradora que «daba la impresión de una tabla de planchar parada. Una tabla de
planchar con la parte más ancha para arriba, parada contra la pared». Como se
vê, Leticia não apenas lhe vê recusado, por constrição física, o movimento,
como é comparada a um instrumento doméstico, convertendo-se em símbolo, aos
olhos das irmãs, da sua futura condição serviçal, na expectativa da sua
dependência doméstica. A rapariga converte-se assim numa espécie de último
cordão umbilical que une as irmãs à casa e à sua infantilidade e, como tal, ao
futuro a que procuram escapar. A sua leitura da literatura infantil e
irrealista de Rocambole, no interior de um quarto nos
fundos da casa, desprezada pela irmã narradora, a ingenuidade e singeleza dos
seus sonhos, a pureza das suas estátuas e atitudes idealizadas (princesas,
vénus, generosidade, renúncia, sacrifício), fazem de Leticia uma figura da
regressão obsessiva ao lado infantil da relação com o mundo, àquele domínio
onde uma infantilidade exacerbada se converte em correlativo correctivo de uma
realidade não satisfatória. Aos olhos das irmãs, Leticia representará
assim a resistência da infância, carente como é de perpétuos cuidados adultos,
de uma quase absoluta dependência dos outros e, como tal, da impossibilidade
radical da individuação desejada pelas adolescentes. É-nos oferecida por
Cortázar através de uma poderosa e comovente imagem de rapariga paralítica
brincando junto à linha do comboio, num sítio onde se está velozmente de passagem,
ironia da condição humana fracturada.
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