Assim, a insuficiência de Leticia faz com que lhe
seja consentida a plenitude da infância, o que acabará por fazer com que se
transforme em líder dos destinos das irmãs: «La primera en iniciar el juego era
Leticia, la más feliz de las tres y la más privilegiada. Poco a poco se había ido aprovechando de los privilegios, y desde el
verano anterior dirigía el juego, yo creo que en realidad dirigía el reino». Leticia
não estava arredada do jogo. Pelo contrário, controlava-o e convertera-se em
protagonista do mesmo. Este consistia no sorteio de determinadas performances
(as raparigas fariam de estátuas ou caricaturariam atitudes) que tinham como
público – fugaz e transitório – os passageiros dos comboios que passavam. Ora a
entrada em cena de um quarto elemento concreto, de um espectador que ganha uma
voz e, progressivamente, um corpo (arremessando bilhetes, acenando da janela e
finalmente vindo ao encontro das irmãs), alterará definitivamente a lógica
deste jogo (é então que elas começam, inclusive, a violar as suas regras,
deixando de sortear e passando a decidir quem deveria fazer a performance).
Esta figura masculina, ingenuamente erotizada pela fantasia idealizante das
irmãs, serve de pretexto à vocação de individuação das mesmas. Na procura de um
núcleo re-familiar que lhes permitisse cortar definitivamente a ligação à casa
materna, a potencial relação com a figura masculina transforma-se num projecto ontogenésico,
mediante uma individuação que é ensaiada a partir da dinamitação das relações
habituais sob o signo do conflito e portadora de angústia. Gera-se a vocação
erótica como desejo de religação a uma figura de repouso que não deixa portanto
de ser simplesmente uma hipóstase do lugar maternal. É que Cortázar
não nos oferece uma, mas três imagens deste desejo de re-fundação familiar pelo
encontro amoroso com um estrangeiro que as colhesse em plena viagem. Com o
aparecimento de Ariel, o rapaz idealizado, as três raparigas descobrem-se de
súbito rivais, o que agudiza a alteridade mútua. A tomada de posse de uma
enunciação autónoma, da expressão de um eu volitivo, que assinala a transição
para a formação plena da identidade, de acordo com Lacan, corrompe,
naturalmente, a ordem gregária que estas três irmãs começavam a perder, quando
Leticia se faz cada vez mais Cinderela, eleita pelo príncipe encantado, e as
suas irmãs descobrem a pulsão da morte própria das raparigas más que há dentro
de todas as raparigas. O facto de a narração nos ser apresentada na perspectiva
de uma destas irmãs permite-nos compreender como a revelação de uma autoimagem
implica o susto do confronto com a estranheza do eu a si próprio, próprio do unheimliche freudiano, e que
compreendemos pelas reflexões da narradora, que interpreta com certo espanto as
suas reacções dúbias, entre o ciúme e o amor, à condição de Leticia e à
preferência que por ela nutre Ariel. Por outro lado, esta autoimagem é
inevitavelmente desajustada à idealidade projectada, gerando aquela consciência
angustiada mergulhada numa situação que Odier designa de sphaleia, de confronto com a diluição de uma promessa que as
condições, limitantes, lhes negam. Ora a relação ingenuamente desejada pelas
três raparigas é constitutivamente impossível: para Leticia, porque ela se
autoimpõe os limites que a sua condição física despoleta, recusando
encontrar-se fisicamente com Ariel; para as suas irmãs, porque este não as
deseja; e para as três porque o rapaz que projectam não existe, é figura de uma idealização que, como tal, o
impossibilita.
É
fácil compreender, assim, porque se reveste o sonho da irmã-narradora de um
clima de pesadelo, mesmo que tendo como cenário o espaço do reino que as irmãs
se inventaram para sua realização. Ela sonha
com e teme a um tempo os comboios que lhe prometem a sua maioridade: «Esa noche
yo volví a soñar mis pesadillas con trenes, anduve de madrugada por enormes
playas ferroviarias cubiertas de vías llenas de empalmes, calculando con
angustia si el tren pasaría a mi izquierda, y a la vez amenazada por la posible
llegada de un rápido a mi espalda o que a último momento uno de los trenes
tomara uno de los desvíos y se me viniera encima». É que o
jogo apresenta uma dimensão ambígua, sendo simultaneamente indutor da experiência
de libertação e de falência desse mesmo intento. Como vimos, o jogo das
raparigas é um análogo da expressão artística, pela sua dimensão performativa e
iminentemente autorreferencial, de predominância estética e não instrumental. Através
deste jogo, as raparigas prefiguram o conjunto dos possíveis a que se abrem e que são definidores da sua própria existência, da formação da sua
própria persona. Porém, na prática,
este jogo limita-se a reiterar as condições que limitam a separação da casa
familiar. Ora vejamos, por exemplo, como o jogo se dividia numa manifestação
mais infantil e numa manifestação mais adulta, não abdicando de nenhuma das
duas. Se as estátuas que as raparigas encenavam constituíam figuras-modelo de
um olhar infantil idealizante (Vénus de Milo, bailarinas, princesas), as
atitudes representavam caricatural e até mesmo grotescamente o mundo dos
adultos: constituíam representações da inveja, da vergonha, do medo, do rancor,
do ciúme, da maledicência, do desalento, do desengano, do horror. O jogo
perpetuava assim aquela autopolémica em que as raparigas já se encontravam ancoradas, à excepção de
Leticia que, sugestivamente, “ia melhor como estátua”, não permitindo, portanto,
resolver essa cisão interior. Mais do que nunca, o território eleito pelas
raparigas para formar o seu reino revela a dimensão de não-lugar que lhe era
inerente como espaço de trânsito, não antropológico, onde não é possível
a conversão do geométrico em existencial, na terminologia de Merleau-Ponty.
Assim, há neste reino uma dualidade topológica que espelha a própria dualidade
humana que as raparigas começam a aperceber, postas como estão entre
infantilidade e maturidade, indecididas num entrelugar.
Além
disso, a própria promessa erótica destrói o potencial de sucesso daquele jogo, justamente
pela possibilitação dessa relação com Ariel. É que a conversão do hipotético
amoroso em possível elimina a dimensão puramente estética da performance lúdica
das raparigas, que passam a estar movidas por um interesse. É onde o jogo, até
então integralmente artístico, adquire uma dimensão instrumental, transitiva, anulando
o prazer de jogar em si mesmo, o puro êxtase do imaginário. A gestão das
expectativas de Ariel em que as raparigas se demoram, a encenação agora animada
pela afectação da pose para um espectador a quem agradar, a quem causar “buena impresión”,
dá bem conta de como estas raparigas, querendo separar-se do comportamento dos
adultos, aprendem a reproduzi-lo. As suas relações passam a estar minadas pelas
intencionalidades, pelos subterfúgios, pelos silêncios, pelos pequenos delitos
e pelas mentiras.Tudo isto ocorre, como disse, pela possibilitação que a
concretização de Ariel implica: «las cosas cambiaron el día en que el primer
papelito cayó del tren» Se outrora as raparigas se perfilavam no seu reino
brincando para um público sóbrio, anónimo, impalpável, e como tal
incorruptível, quando este se realiza, ganhando um nome e um rosto, o jogo principia
a destruir-se, pois depressa o hipotético se converte em possível e o possível
em excessivamente real, perdendo o jogo a magia multiplicativa do artístico. E
é então, onde surge um outro
concreto, promessa de um contacto com a viagem, com a possibilidade da fuga,
que pode surgir a desilusão, a disforia – é onde o rapaz não é o que elas
imaginaram – que o mundo adulto começa a criar-se como espaço de desencanto. Ariel
revela-se, pouco a pouco, na sua imperfeição: um pouco seco, de péssima
caligrafia, de uma escola pobre, de olhos outrora azuis afinal cinzentos. Paulatinamente,
aquela figura idealizada, cuja dimensão imaginária funcionava ao modo do tabu, do que é intocável,
colapsa: Ariel, que teria dezoito anos na imaginação das raparigas e
frequentaria um colégio inglês, embora não perdendo algum do seu encanto
original, acaba por revelar-se demasiado comum, como uma personagem familiar de
uma história repetidas vezes contada.
Finalmente,
quando Ariel particulariza o seu interesse, elogiando Leticia através de um
bilhete atirado pela janela do comboio, acaba por minar as relações entre as raparigas,
forçando a sua individuação, mas pelo
lado da dor. As irmãs de Leticia começam a falar dela nas suas costas, a
querer afastá-la do jogo ou, noutras ocasiões, insistem para que, “ya que el otro
la prefería, la mirara hasta cansarse”. Este processo de individuação e de
revelação das relações conflituais é no entanto travado, no final do conto,
pela descoberta da piedade, através do exacerbar do amor fraternal. Quando
Ariel anuncia que sairá do comboio no apeadeiro mais próximo para se encontrar
com as irmãs, e Leticia decide faltar ao encontro, enviando-lhe uma carta
através de Holanda, carta essa cujo conteúdo omisso constitui mais um dos
vazios narrativos tão próprios de Cortázar, lançando-nos, a nós, jogadores, numa indecisão fundamental, as
irmãs parecem restabelecer com Leticia uma relação de acordo íntimo que julgávamos
ameaçada. Após o encontro das duas com Ariel, no qual definitivamente confirmam
a impossibilidade da sua relação com ele, descem por uma penúltima vez ao
reino: “Quisiera que me dejaran hoy a mí", agregó [Leticia] sin mirarnos. Nosotras sacamos en seguida los ornamentos, de golpe queríamos ser tan
buenas con Leticia, darle todos los gustos y eso que en el fondo nos quedaba un
poco de encono”. Este arrependimento culmina com a maravilhosa estátua da irmã,
a qual, em mais uma imagem da relação ambígua de transgressão/pertença com a
figura materna, roubara à mãe um colar que envergaria neste momento derradeiro:
«Nos pareció maravillosa, la estatua más regia que había hecho nunca, y
entonces vimos a Ariel que la miraba, salido de la ventanilla la miraba
solamente a ella, girando la cabeza y mirándola sin vernos a nosotras hasta que
el tren se lo llevó de golpe. No sé por qué las dos corrimos al mismo tiempo a
sostener a Leticia que estaba con los ojos cerrados y grandes lágrimas por toda
la cara». O movimento da narradora e de Holanda para segurar Leticia nos
braços dá conta da aceitação de uma condição de parceiras, de auxiliadoras na
condição precária desta, uma resignação, afinal, à impossibilidade da
individuação. O jogo terminaria ali, e com o final do jogo dar-se-ia o fim da
infância como recusa do espaço de familiaridade. No dia seguinte, as irmãs de Leticia regressariam pela última vez ao reino, para confirmar isso mesmo: «Cuando
llegó el tren vimos sin ninguna sorpresa la tercera ventanilla vacía, y
mientras nos sonreíamos entre aliviadas y furiosas, imaginamos a Ariel viajando
del otro lado del coche, quieto en su asiento, mirando hacia el río con sus
ojos grises.» O desvanecimento de Ariel, como autêntica perda do comboio da
vida adulta, o comboio para fora do espaço familiar, devolvendo a distância de
segurança à relação entre jogadores e espectadores, restabelece a ordem da
casa. O jogo revela-se, afinal, como puro divértissement,
à maneira de Pascal, e nada mais do que isso, quando se dá a plena aceitação
dos limites em que as raparigas se acham circunscritas. A tia Ruth cuida de
Leticia, em casa, como era próprio da ordem das coisas, Ariel olha para aquele
rio que no início a narradora projectara como promessa de um horizonte longínquo,
mas no lado mais afastado da carruagem. A porta branca que dava para o reino
encontra-se fechada, bloqueando, recalcando, o desejo de individuação das
raparigas, que regressarão, podemos imaginá-lo, à rotina doméstica, pelo menos
superficialmente mais apaziguada. A presença engolidora do núcleo materno,
perpetuada pelas contingências de uma rapariga que requer o cuidado familiar ao
qual as suas irmãs por fim se entregam, iniciou-as afinal numa maioridade no
próprio seio desse núcleo, de que são as herdeiras perpetuadoras, numa
configuração mais ou menos fantasmática. Assim, o final do jogo é e não é,
afinal, o fim da infância.
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