Antes de voltar a olhar para ele,
Morand vomitou no canto do atelier, sobre os trapos sujos. Sentia-se vazio, e
vomitar fez-lhe bem. Levantou o copo do chão e bebeu o que restava do whisky, pensando
que Thérèse chegaria a qualquer momento e que era necessário fazer alguma
coisa, avisar a polícia, explicar-se. Enquanto arrastava com um pé o corpo de
Somoza, até expô-lo inteiro à luz do reflector, pensou que não lhe seria
difícil demonstrar que agira em legítima defesa. As excentricidades de Somoza,
o seu alheamento do mundo, a evidente loucura. Agachando-se, molhou as mãos no
sangue que corria pela cara e pelo cabelo do morto, olhando ao mesmo tempo o seu
relógio de pulso que marcava as sete e quarenta. Thérèse devia estar a chegar,
o melhor era sair, esperar por ela no jardim ou na rua, evitar-lhe o
espectáculo do ídolo com a cara jorrando sangue, os fiozinhos vermelhos que
resvalavam pelo pescoço, contornavam os seios, que se juntavam no fino
triângulo do sexo, escorriam pelas coxas. O machado estava profundamente sepultado
na cabeça do sacrificado, e Morand agarrou-o balanceando-o entre as mãos
pegajosas. Empurrou um pouco mais o cadáver com um pé até deixá-lo contra a
coluna, farejou o ar e aproximou-se da porta. O melhor seria abri-la para que Thérèse
pudesse entrar. Apoiando o machado junto à porta, começou a tirar a roupa,
porque estava calor e cheirava a um ar espesso, a uma multidão encerrada. Já estava
despido quando ouviu o ruído do táxi e a voz de Thérèse dominando o som das flautas.
Apagou a luz e, com o machado na mão, esperou atrás da porta, lambendo o gume
do machado e pensando que Thérèse era a pontualidade em pessoa.
Final do Jogo
Cavalo de Ferro, 2014
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